A epígrafe é elucidativa: “Só dez por cento é mentira. O resto é invenção”, lembrança a uma famosa frase do poeta Manoel de Barros. Com esse ponto de partida, o jornalista e escritor Zuenir Ventura sentiu-se à vontade para escrever Sagrada Família, misto de memória e ficção que a editora Alfaguara lançaria amanhã (23/6) – o lançamento oficial acontece durante a Festa Literária Internacional de Paraty, em julho. “São lembranças que transformei em novas histórias”, conta. “Em um determinado momento, já nem sabia mais o que era fato real.”
Conhecido por grandes obras de não ficção (como 1968 – O Ano Que Não Terminou), além de reportagens clássicas transformadas em livro (Chico Mendes – Crime e Castigo), Zuenir cultivava havia dez anos o projeto de delinear suas lembranças –não na forma tradicional de autobiografia, mas uma mescla movida a nostalgia. Assim, Sagrada Família concentra-se na cidade ficcional de Florida, na região serrana do Rio de Janeiro, nos anos 1940. Pelos olhos do narrador, Manuéu (alter ego do escritor), surgem personagens hilariantes, como a tia Nonoca, uma viúva fogosa pois ainda jovem, e suas filhas Cotinha e Letinha, incansáveis na luta por um novo amor. Ao traçar o cotidiano de uma pequena comunidade, Zuenir consegue reconstruir um importante período da história brasileira, que tanto compreende a iminente entrada na 2ª Guerra Mundial como o importante passo na modernização da sociedade.
“Essa foi uma época de muito recato escancarado e, ao mesmo tempo, muita malícia escondida, o que resultava em uma grande hipocrisia”, observa Zuenir, que se inspirou na história de duas primas para criar as irmãs Cotinha e Letinha. “Ainda está muito viva a memória da minha família, que me serviu de mote”, conta o escritor, que contratou uma pesquisadora para acertar datas e fatos históricos que ambientam a trama, enquanto ele próprio se ocupou de ouvir amigos e outros parentes.
“O título é uma ironia”
“O cineasta Roberto Farias, por exemplo, meu amigo de infância, cobrou a presença da Viuvinha no livro”, diverte-se ele, referindo-se à figura da mulher que se tornou lendária na cidade por iniciar sexualmente os garotos. Embora Florida seja fictícia, Zuenir inspirou-se em seus momentos vividos em Friburgo. E ele garante que até um caso aparentemente inverossímil realmente ocorreu: trata-se da mulher que, sem ter recebido nenhuma preparação da mãe, assustou-se com o ritual da lua de mel. “Embora fosse uma moça que se passasse por provocadora – vivia fazendo beicinhos para os meninos –, ela não sabia o que a esperava na noite de núpcias”, conta Zuenir, lembrando que o marido foi obrigado a levar a menina de volta à casa dos pais para receber uma, digamos, lição conveniente.
Se o projeto começou a ser concebido dez anos atrás, foi apenas em 2005 que começou a ganhar forma. “Conversei com o Roberto Feith (publisher da Objetiva) e acertei a publicação. Mas acabei adiando, pois aceitei fazer duas encomendas.” Quando já pensava em arquivar a história, ele foi novamente sondado pelo editor. Aí, o processo deslanchou: Zuenir enviou os capítulos já prontos, Feith aprovou e o escritor sentiu-se novamente motivado a finalizar a trama. “O título é uma ironia como registro de uma época, mas acredito ter sido fiel ao fotografá-la”, comenta o autor, que confessa pouco intencionado a continuar sua carreira como ficcionista. “O jornalismo sempre foi minha maior ocupação.”
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[Ubiratan Brasil, do Estado de S.Paulo]