Duas décadas se passaram desde o impeachment do presidente Fernando Collor de Melo. Também transcorreram 13 anos da publicação de um dos livros de jornalismo que mais polêmicas provocaram, ao tratar justamente do traumático acontecimento de outra perspectiva: tomando os jornalistas como protagonistas. Passado tanto (ou tão pouco) tempo, conforme a ótica, tudo está virado. Talvez nenhuma pitonisa de 1992, quando Collor foi afastado, ou em 1999, quando o livro foi publicado, pudesse prever o que se sucederia.
Collor, depois de oito anos de expurgo da vida pública por conta do impedimento e da mala suerte em eleições nas suas Alagoas de origem, ocupa uma privilegiada cadeira de senador da República. É cultivado pelos seus inimigos de ontem, os petistas, e ouvido como se pudesse ser fonte confiável – ou dotada de credibilidade.
Os jornalistas, que contribuíram decisivamente para sua deposição, oferecendo munição para os combates de ruas dos “caras pintadas” em defesa da moralidade pública, pularam a cerca. Passaram a usar seu arsenal de fontes, informações e experiência não em defesa de alguma causa pública ou para aprimorar o ofício de jornalistas em posição oposta à do poder. Agora se dedicam a ganhar dinheiro. Funcionam como algodão entre vidros ou como guias de cegos em tiroteio perante a opinião pública. Alguns criaram empresas e construíram fortunas. Poucos continuaram nas redações.
Dentre tantos jornalistas investigativos que atuavam no mercado, Mário Sérgio Conti seria o candidato com menores possibilidades de estar agora numa posição moralmente mais elevada. Muitos dos seus colegas o acusaram de fazer o jogo do establishment, sobretudo dos patrões das empresas jornalísticas, com seu Notícias do Planalto, um livro volumoso e caprichado que a Companhia das Letras lançou no mercado em grande estilo, em 1999. Virou best seller e cult.
Fato raro
A moral da obra seria atribuir aos repórteres uma má vontade – pessoal e tendenciosa – por Collor. Fizeram uma verdadeira campanha de imprensa contra o presidente, à margem dos controles dos seus chefes, a despeito da vontade das suas corporações. O livro comprovaria a visão geral de quem se assenta nas dependências do Palácio do Planalto e em várias das suas extensões: a imprensa está infiltrada por comunistas, esquerdistas ou petistas, indiferentemente à ordem. Não seria por outro motivo que Conti conseguiu ter acesso direto e frequente ao todo-poderoso Roberto Marinho, ainda à frente da TV Globo.
Fatias de poder realmente Conti possuía. Era diretor da revista Veja, que lhe concedeu dois anos de licença para ele se dedicar por inteiro ao livro. Antes de Notícias do Planalto ir ao mundo, Conti tinha recebido a incumbência da Editora Abril de conceber uma revista semanal de reportagem. Mas quando o conteúdo do livro veio a público, foi “demitido de pronto e o projeto cancelado”. Não era o que os Civita esperavam, obviamente.
Conti sobreviveu. Depois de trabalhar em Paris para outros veículos (inclusive emissoras de rádio), voltou ao Brasil para comandar o programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, e a revista piauí, onde agora se apresenta como repórter. Percorrido o caminho de Damasco, preparou uma nova edição do livro, antecipando o posfácio no último número da revista onde trabalha (ver “Escândalos da República 1.2“).
O tom desse texto de encerramento da nova edição do livro, sem informar se alguma coisa no texto original foi modificada, se baliza entre honoráveis inquirições de dois grandes poetas, o americano W. H. Auden e o também americano (mas naturalizado inglês) T. S. Eliot. Os dois poetas indagam sobre o aprendizado que podemos ter das lições do tempo numa relação dialética com o passado, o presente e o futuro.
Maturado pelas duas décadas que se passaram, com intensidade maior (como tinha que ser) durante a temporada parisiense, Conti podia ter usado como paráfrase outro verso de Auden com o qual o também jornalista (e escritor) Antônio Callado abriu seu romance Bar Don Juan: em época de crise, abre-se um bar.
A crise de hoje não é a mesma dos anos 1970, embora em ambas tenha vigência o império do milagre econômico. Agora o crescimento ocorre em uma democracia, a mais longa da República brasileira. Há muito dinheiro em circulação e parte dessa riqueza é drenada, em conta-gotas, para os mais pobres, acontecimento raro na agenda nacional. O maior volume, no entanto, continua a seguir para os privilegiados de sempre, mais ricos do que nunca.
Posições invertidas
Se na ditadura o bar aberto era o reduto necessário para purgar mágoas e renovar alguma esperança, agora o sítio do enriquecimento é a banca das mágicas midiáticas, das ferramentas que permitem vender por ouro a lata que reluz – e manipular vontades e consciências. É uma democracia, sim, mas como ela é superficial e frágil.
Peritos na mágica da informação, os jornalistas que caçavam todos os dias o dito caçador dos marajás das Alagoas emprestam sua expertise (ou esperteza, na maltratada língua nacional) para dourar a pílula e dar aparência de seriedade (e até mesmo de honestidade) ao cliente, qualquer que ele seja.
Tudo é espetáculo. E no espetáculo atual o que decide é a produção, a pré-produção. Os clientes ensaiam antes de dar entrevista ou aparecer na televisão, são treinados para serem mais agressivos do que os jornalistas, recebem textos preparatórios, vão ao salão de beleza e tudo mais, sempre conduzidos pelos guias, os ex-jornalistas investigativos, no melhor da sua forma, como costumam dizer os atletas de outros esportes, no seu vocabulário já não tão simplório.
Não se trata de patologia individual: é alternativa para a qual jornalistas foram estimulados a seguir desde que as grandes organizações jornalísticas passaram a exigir dos seus contratados que se tornassem empresas jurídicas. Assim, o contratante se livrava de grande parte do peso fiscal e tributário, repassado ao contratado. Mas com uma moeda de troca: a divulgação do seu nome, a abertura de portas para que ele também arranjasse contratados. Virasse uma firma para valer.
A parceria está em pleno desenvolvimento, uns e outros tirando seus proveitos, à custa de um terceiro interessado: o distinto público. Não surpreende que as posições de duas décadas atrás se tenham invertido. E que esteja muito mais difícil ver a inversão, identificar seus promotores e favorecidos, contar uma história completa, saber a verdade, desmanchar a mise-en-scène, desfazer o faz-de-conta.
Notícias novas do Planalto? Só através das empresas de assessoria e ajuda. Notícias preaquecidas ou plantadas. Se o Brasil melhorou, saber disso se tornou menos acessível aos não iniciados. Pior para a democracia.
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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]