Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

De volta ao inferno

Escrever um livro de memórias de mais de 600 páginas foi como fechar a porta ao passado para seguir com sua vida adiante, disse o escritor anglo-indiano Salman Rushdie à rede de TV inglesa BBC, acrescentando que não estava emocionalmente pronto para fazê-lo antes. Com lançamento mundial hoje [18/9] no Brasil, pela editora Companhia das Letras (616 páginas, R$ 54,50, tradução de José Rubens Siqueira e Donaldson M. Garschagen), Joseph Anton olha para o passado de Rushdie desde que, em fevereiro de 1989, o aiatolá Khomeini o condenou à morte, alegando blasfêmia contra o profeta Maomé e o Islã no romance Os versos satânicos, publicado em 1988.

A porta fechada do passado, porém, não podia ter mais brechas neste momento. Depois de uma semana de violentos protestos em países do mundo árabe contra a exibição do filme Inocência dos muçulmanos, que satiriza a história de Maomé, uma fundação religiosa iraniana aumentou no fim de semana a recompensa pelo assassinato de Rushdie para US$ 3,3 milhões, US$ 500 mil a mais do que a oferecida anteriormente. E mostrou o sentido atual da história romanesca de esconderijos e luta pela liberdade por que passou Rushdie, hoje aos 65 anos. “Um livro crítico ao Islã dificilmente seria publicado hoje”, declarou o escritor.

Joseph Anton é o nome que o autor passou a usar para fugir da fatwa, a “sentença de morte” do aiatolá do Irã – expressão que, logo ao início do livro, Rushdie rejeita: “Aquilo não era uma sentença lavrada por um tribunal que ele reconhecesse, ou que tivesse alguma jurisdição sobre ele. Era o edito de um velho cruel e moribundo”, afirma o narrador, procurando alguma distância de sua própria vida pelo relato em terceira pessoa. “Mas ele sabia também que os hábitos de seu antigo eu não tinham mais serventia alguma. Ele era agora uma nova pessoa.”

Uminferno após a “sentença” de 1989

No dia em que soube da “condenação à morte” – dele e de todos os envolvidos na publicação do livro –, Rushdie deu uma entrevista à rede de TV americana CBS: “Eu gostaria de ter escrito um livro mais crítico.” Não adiantava. À sua revelia, “ele era agora uma nova pessoa”. O novo nome, que não podia remeter a suas origens indianas, foi escolhido em homenagem aos escritores Joseph Conrad e Anton Tchekov. Como conta em suas memórias, sob esse nome Rushdie terminou um casamento e começou outro; acompanhou o câncer de sua primeira mulher, mãe de seu primeiro filho, até a morte; viu seu editor norueguês sofrer um atentado e o japonês ser assassinado; criou afetos e desafetos no meio editorial; e testemunhou o crescimento das ameaças do fundamentalismo islâmico no mundo – ainda que Joseph Anton tenha morrido em 2002, quatro anos após o governo iraniano retirar o apoio a seu assassinato. Nesse tempo, Rushdie nunca se arrependeu de sua declaração à CBS.

“Me orgulho de ter dito aquilo em profundo choque” disse o escritor, em entrevista publicada ontem (17/9) no jornal britânico The Guardian, realizada dias antes do aumento da recompensa de assassinato pela fundação iraniana. “Os versos satânicos não são – ou não são apenas – sobre o Islã. O romance lida com a história da origem da religião seguindo o Islã de perto. É sobre a natureza da revelação, sobre as visões. Há muitos paralelos entre as revelações de Joana D’Arc e São João, o Divino e as descrições de Maomé de sua visão do anjo Gabriel. Me parece uma realidade subjetiva. Se você estivesse ao lado de Maomé teria visto o anjo? Provavelmente não, mas ao mesmo tempo Maomé não estava inventando o que viu. Para ele não era ficção. É interessante escrever sobre isso.”

A vida de Rushdie se tornaria um inferno após a “sentença” de 1989, seguida por protestos contra Os versos satânicos, mesmo das comunidades muçulmanas na Inglaterra. O romance se tornou um dos mais comentados do mundo, daqueles que muitos já ouviram falar, embora poucos o tenham lido. De escritor, Rushdie passou a celebridade, invejando os amigos Martin Amis e Ian McEwan por suas pacíficas carreiras literárias, enquanto ele precisava viver escondido e brigar para publicar novos livros.

Dificuldades para publicar

Em suas memórias, Rushdie revela uma resistência não apenas aos fanáticos religiosos, mas também aos críticos da proteção dada pelo governo britânico ao escritor, como o romancista John LeCarré, que atacava o fato de Rushdie manter o livro em circulação, em vez de recolhê-lo “até que tempos mais calmos sobreviessem”. Para o escritor, era impensável se autocensurar. Mais do que isso, ele desejava ir adiante. Como conta, uma briga foi travada com o diretor da editora Penguin na época, Peter Mayer, que não quis publicar a edição em brochura de Os versos satânicos depois de especialistas em segurança apontarem riscos para a editora.

Rushdie também relata os problemas para lançar, em 1990, Haroun e o mar de histórias (Companhia das Letras), escrito para o filho Zafar que, aos nove anos, havia pedido ao pai um livro que pudesse ler. O pai cumpria a promessa de que o escreveria, mas ninguém queria publicar nem um livro infantil de Rushdie, uma fábula também muito lida por adultos. “Os editores tinham muito medo. Qualquer coisa que Rushdie fizesse era lida a partir da condenação, dessa figura pública, e ele tinha que brigar por cada espaço da liberdade”, afirma Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras. “Ele era lido por parte dos escritores e da imprensa britânica como alguém que lutava por direitos indevidos.”

Rushdie também teve apoio do meio editorial, como de Deborah Rogers, ex-agente literária do escritor que, mesmo tendo sido trocada por outro agente, foi uma das primeiras a dar abrigo a Rushdie – que só voltou à casa onde morava três anos depois de sair para dar a entrevista à CBS.

Leituras em Nova York

Enquanto isso, sua mulher na época (a segunda), a escritora Marianne Wiggins, é retratada de forma muito negativa por não apoiá-lo em momento tão difícil, inclusive dando uma entrevista em que o chamava de fraco. Ela foi a única das quatro ex-mulheres de Rushdie a não ser consultada sobre o livro. “Rushdie entra nas minúcias da pessoa na qual tem que se transformar, ao lado dos amigos que de certa maneira o ajudam a se esconder. É uma narrativa quase de suspense”, diz Schwarcz.

Há uma década, Rushdie de fato vive a maior parte do tempo em Nova York, onde fará leituras públicas de Joseph Anton hoje, às 19h, numa das filiais da livraria Barnes & Noble, e amanhã, às 19h, na PowerHouse Arena, no Brooklyn. Enquanto isso, além da recompensa por sua cabeça, desde junho circula no Irã um jogo de computador chamado “A vida estressante de Salman Rushdie e a implementação de sua sentença”, criado para espalhar a mensagem sobre o “pecado” do escritor às novas gerações.

Mesmo com o radicalismo ameaçando arrombar a porta que Rushdie tenta fechar, ele mantém a posição de quase 14 anos atrás. “Achava, e continuo achando, que nada está fora dos limites. Quando você começa a escrever sobre as coisas que são a experiência central da sua vida, você pode falar do que quiser, do modo que quiser”, disse à BBC.

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[Suzana Velasco, de O Globo]