Histórias em quadrinhos foram consideradas, por décadas a fio, como mero e vulgar “entretenimento”, no Brasil e no mundo. Pertencentes ao mundo controverso das comunicações de massa, foram substituídas, no coração de seus públicos-alvo, por outros passatempos, como a televisão, os videogames, e finalmente a internet.
No Brasil, os quadrinhos de Mauricio de Sousa, em seus cinquenta anos de sucesso crescente, ainda são a leitura inaugural de grande parte das crianças. E o próprio empresário e ex-desenhista atentou para a revolução dos usos e costumes da sociedade do século 21. Com a gradativa diminuição da infância, e a consequente juvenilização das ex-crianças, Mauricio imaginou um gibi de transição para atender aos pré-adolescentes. Colocando a grife da consagrada Mônica a serviço do universo dos quadrinhos japoneses – os mangás –, Mauricio manteve a chama de seu universo acesa, em versões infantil e juvenil, mantendo as cifras milionárias de vendas nas bancas de jornal.
E já que hoje em dia se discute a sobrevivência dos jornais impressos, cabe lembrar que o criador da Turma da Mônica começou exatamente nessa mídia impressa. Em 1959, o jornal Folha da Manhã, que depois se tornou a Folha de S.Paulo, foi o primeiro veículo a apostar no trabalho do desenhista. Depois, vieram os investimentos em revistas, desenhos animados, merchandising e parques temáticos. Mas o ponto de partida da carreira de Mauricio foi o jornal.
Oúltimo suspiro de vitalidade
E o jornal continua sendo o ponto de partida para outros autores de histórias em quadrinhos, que no veículo impresso saem no formato de tiras. Angeli, Laerte e Fernando Gonsales são autores muito lembrados e ativos no formato. Graças à abrangência e prestígio da Folha de S.Paulo, têm a chance de contar com um universo de fãs que também consome as tiras de jornal em outros formatos: inicialmente em revistas de banca e, depois, em coletâneas vendidas nas livrarias.
Por sinal, o movimento atual dos quadrinhos brasileiros está mesmo nas livrarias. Autores consagrados como os supracitados atendem à demanda dos leitores veteranos com álbuns caprichados de seus quadrinhos mais antigos. Os novos autores, por sua vez, estreiam com revistas e livros graficamente mais sofisticados, ao lado de desenhistas que lançam adaptações próprias de romances consagrados, como os de Machado de Assis e Jorge Amado.
E as novas tiras para jornal, como ficam, nessa gama de autores tão diversificada? Pra começar, muitas surgem direto na internet e vão parar em jornais e livros por conta de sua popularidade na web, caso de André Dahmer, autor de Malvados. Outros, como Orlandeli, são da geração dos anos 90, surgida com o último suspiro de vitalidade desse espaço para autores de tiras em jornais.
Um modo de viver fadado ao insucesso
Residente em São José do Rio Preto, Walmir Orlandeli surgiu em revistas independentes de sua cidade, trazendo os personagens Grump e o cachorro Vândalo. Numa simplicidade calcada no traço autodidata de Henfil, Grump ganhou contornos mais pessoais ao longo dos anos, tendo suas tiras publicadas por meio da Agência Estado, que as distribuía para jornais do país todo. A partir da publicação de histórias em quadrinhos de temáticas mais abrangentes na revista-livro Front, da editora Via Lettera, Orlandeli viu seu trabalho ganhar força e sofisticação. As experiências narrativas e de desenho culminaram na tira (SIC), que ganhou espaço (e prêmio) no Salão Internacional de Humor de Piracicaba, em 2008. Veio a continuação da tira no Diário da Região, da cidade-natal do autor, e por fim a reunião de (SIC) em livro da editora Conrad.
(SIC)é uma tira com jeitão de crônica. Traz personagens diferentes a cada história. Mas, ao contrário da tradição bem-humorada da tira e da crônica feitas no Brasil, (SIC) dá ênfase aos anônimos, nós mesmos, com os quais esbarramos nas esquinas da vida. Orlandeli é o cronista dos fracassados, impregnados daquela amargura que acaba virando piada simplesmente porque fingimos que a tragédia relatada não é com a gente. Mas pode ser, a qualquer momento, e não adianta torcer o nariz ou virar a cara para essa possibilidade.
Num mundo de individualismo aquém de qualquer sensatez, desprovido de humanidade essencial à sobrevivência em qualquer sociedade, os olhos vazados e a atmosfera descolorida dos tipos sem-nome de Orlandeli bastam para que a tira de humor, em formato revigorado, seja a denúncia de um modo de viver fadado ao insucesso. Ironicamente, o autor é bem-sucedido ao experimentar a reconstituição dessa vida contemporânea em quadrinhos rápidos e nada rasteiros.
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[Érico San Juan é cartunista, radialista, designer gráfico e caricaturista]