Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Irineu e o jornalismo no século 20

No dia 18 de julho de 1911 surgia na cena cultural do Rio de Janeiro, capital da jovem República dos Estados Unidos do Brasil, a primeira edição de um novo diário, A Noite, vespertino com intenção de cair no gosto popular.

Idealizado pelo jornalista niteroiense Irineu Marinho, então com 35 anos, o jornal nasceu, segundo o jornalista e escritor Paulo Barreto, mais conhecido como João do Rio, um dos seus fundadores, com capital de 60 contos de réis, assim constituído: 20 contos do empresário Celestino da Silva, dono do teatro Apolo, cujas ações foram doadas a Marinho. Vinte contos do próprio João do Rio; oito contos de Avelino de Medeiros Chaves, proprietário de seringais no Acre, cinco contos de Joaquim Marques da Silva, que seria sócio na empresa até 1918. E o restante de jornalistas que se integraram ao projeto.

Um ano depois do bem-sucedido lançamento, Irineu Marinho e Joaquim da Silva decidiram devolver integralmente a participação de João do Rio, não incluído na sociedade apesar do seu prestígio e da admiração mútua com Marinho. Eles souberam que seu dinheiro fora obtido com o político paulista Rodolfo de Miranda, ligado ao presidente da República Hermes da Fonseca, candidato à presidência do seu Estado e que teria a intenção de convencer João do Rio a fundar um jornal comprometido com sua campanha. Ele não chegou a perceber a razão da dispensa de sua participação.

A história é contada da página 100 à 103 do livro Irineu Marinho – Imprensa e Cidade (Globo Livros, 232 págs., R$ 48), da historiadora e socióloga Maria Alice Rezende de Carvalho, que será lançado hoje à noite na Livraria da Travessa do Leblon (av. Afrânio de Melo Franco, 290, Rio) com uma exposição de fotos sobre a vida do personagem. Ilustra bem o papel modernizador de Marinho – que 14 anos depois fundaria o jornal “O Globo” poucos dias antes de morrer de enfarte –, ao buscar um caminho estritamente empresarial para fazer imprensa, lançando um jornal independente e apartidário em um contexto ainda dominado pela ajuda, e consequente tutela, dos governos à maioria dos veículos de imprensa, como diz no prefácio do livro o historiador José Murilo de Carvalho.

Furos frequentes

Logo de início, a historiadora oferece suas principais conclusões do que, segundo ela, não é uma biografia, mas “uma análise do jornalismo praticado no início do século XX, que se baseia na trajetória de Irineu Marinho e do seu jornal A Noite”. Segundo Maria Alice, “a conclusão mais abrangente” é que Marinho, seu jornal e o Rio no começo do século passado “constituem, juntos, uma boa chave para decifrar a moderna experiência cultural da capital da República”.

Para ela, os três personagens representam “as figuras do repórter, da imprensa profissional e popular e de um território social mesclado” que “permitem entrever os andaimes de um mercado de notícias e entretenimento em construção, que não separou radicalmente elite e povo, alta e baixa culturas, produção cultural de massa e prestígio intelectual”. Isso, cuida de ressalvar, sem desconhecer “a truculência com que eram tratados pobres e negros na capital federal”.

A autora tem o cuidado também de contextualizar a atitude empreendedora e independente de Irineu Marinho em um ambiente no qual já começava a nascer essa postura moderna em outros veículos de imprensa, como a “Gazeta de Notícias”, de onde o jornalista saiu para se tornar empresário. Em grande parte, a modernização era inspirada nos exemplos que vinham desde o fim do século XIX da Europa e, principalmente, dos EUA, com o sucesso do New York Journal, do talvez primeiro magnata da mídia moderna, William Hearst.

“A imprensa autônoma, não subsidiada, existiu nas primeiras décadas da República, do que Irineu Marinho é um exemplo, e depois”, diz a historiadora ao Valor. Segundo ela, “em tempos e com ritmos diferentes, os jornais incorporaram traços de modernização puxada por alguns, como A Noite e, antes dela, a Gazeta de Notícias”. Maria Alice afirma ainda que no contexto daquele momento “o tema da profissionalização dos jornalistas, por exemplo, era incontornável, à medida que a imprensa ia se desprendendo do campo político ou literário e se constituindo em um campo próprio”.

O relato mostra que Irineu Marinho carregou esse senso de profissionalização desde quando, em 1891, aos 15 anos, atravessou a baía de Guanabara e se ofereceu para ser revisor suplente, aquele que pegava eventuais sobras de serviços, do Diário de Notícias.

Quando decide fundar o vespertino A Noite, já era diretor do matutino Gazeta de Notícia, posição que tentou acumular, da mesma forma que parte da redação do novo jornal, uma vez que os horários não conflitavam. Foram traídos pela dinâmica do bom jornalismo: segundo Maria Alice, os frequentes “furos” que A Noite passou a dar na Gazeta forçaram a separação.

Prisão na ilha

Empreendedor, Irineu Marinho vislumbrou já naquela época a ideia do conglomerado de mídia. De vida curta, sua Veritas Film deixou como maior herança o sucesso popular de 1917 “A Quadrilha do Esqueleto”, filme com emocionantes cenas de luta no bondinho do Pão de Açúcar que lançou a carreira cinematográfica do ator Procópio Ferreira.

Em folhetim, durante 52 edições consecutivas de A Noite, publicou o livro “Numa e Ninfa”, com a temática explosiva das relações corrompidas entre políticos e jornalistas. A obra seria depois publicada em livro pela Empresa de Romances Populares, braço editorial de A Noite.

Irineu Marinho também se relacionou com o mundo da música, tendo ajudado a viabilizar a excursão europeia do grupo Os Oito Batutas, que tinha entre seus membros Pixinguinha e Donga. “Pelo Telefone”, considerado o primeiro samba gravado no Brasil, do qual Donga é um dos autores, nasceu inspirado em reportagem de A Noite sobre a tibieza das autoridades policiais do Rio com os jogos de azar.

A busca de mercado e independência em relação ao poder não impediu que A Noite e seu diretor se engajassem nas lutas políticas da época. A oposição sistemática ao governo Hermes da Fonseca valeu, durante o estado de sítio de 1914, a suspensão do jornal durante quase todo o mês de março e o refúgio de Irineu Marinho na legação argentina.

Em 1922, sendo seu jornal acusado de cooperar com o levante dos tenentes do Forte de Copacabana (18 do Forte), passou quatro meses preso na Ilha das Cobras (baía de Guanabara), de onde saiu com a saúde abalada. Partiu para a Europa com a família em 1924, de onde voltou para fundar, em 29 de julho de 1925, O Globo – herdado por seu primogênito, Roberto Marinho, com sua morte, em 21 de agosto, aos 49 anos. Mas aí é outra história.

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[Chico Santos, do Valor Econômico]