Em novembro de 1861, um padre paraibano viajou do Recife ao Rio de Janeiro para exibir na Exposição Nacional a sua invenção: uma máquina que permitia, pela primeira vez, a escrita mecânica. O aparelho foi premiado: recebeu uma medalha de ouro com a efigie de Dom Pedro II. Ainda assim, não estava entre os objetos selecionados para representar o Brasil na Exposição Universal, em Londres. No barco, que zarpou em fevereiro do ano seguinte rumo à Europa, iam machados, enxadas e mais de 300 amostras de madeira. A comissão alegou falta de espaço para a máquina.
Essa é a história que Miguel Sanches Neto conta em seu novo romance, A Máquina de Madeira. E ela é verídica. Francisco João de Azevedo (1814-1880) apresentou ao imperador em 1861 a máquina taquigráfica – que registrava textos de forma abreviada, por meio de códigos. Há relatos de que ele aperfeiçoou essa invenção, criando a máquina de escrever alguns anos antes de a americana Remington, fabricante de armas, lançar o mesmo equipamento, em 1874.
“Há controvérsia se o material de padre Azevedo teria sido roubado ou não”, conta Sanches Neto. Alguns defendem que um comerciante americano, em visita ao Brasil, teria levado a máquina para os Estados Unidos e a apresentado aos donos da Remington. Uma segunda hipótese é a de que ele não levou a máquina, mas informações sobre o funcionamento do aparelho. Outros acham que foi uma coincidência. “Como romancista, optei pela versão de que a máquina fica com o padre, mas sua ideia é levada para os Estados Unidos”, diz o escritor, que deu início ao projeto em 2003, depois de ler uma notícia sobre o padre Azevedo.
Em segundo plano
Além de ficar curioso sobre o modo como a inovação é tratada no Brasil, Sanches Neto se viu atraído emocionalmente pela história. “Venho de uma família de trabalhadores braçais, a maioria analfabeta. O diploma de datilógrafo, que recebi aos 12 anos, foi o mais importante da minha vida, pois me habilitava a ser representante do mundo letrado”, diz o autor, que escreveu seus dois primeiros livros numa máquina de escrever. Pesava ainda a melancolia de ver a companheira ser trocada pelo computador. “Fiz um réquiem.”
Foram anos de pesquisa, em busca de um material que se mostrou escasso. Paranaense, Sanches Neto viajou para Rio, João Pessoa, Olinda e Recife em busca de dados sobre o padre e sua invenção. “Peguei um hotel no Recife Antigo, e essa vivência, aliada aos textos que li, me iluminou muito. Havia uma imponência nos prédios que sobreviveram que mostravam a pujança na cidade no século 19. Recife era uma cidade de vanguarda. Acabei entendendo que o padre só poderia ter atuado lá, numa sociedade progressista. Mas quem dava o aval para a indústria estava no Rio.”
A mensagem do livro é clara. “Uma invenção nunca era um projeto solitário, fazia parte de uma cadeia”, diz um trecho do livro. E, embora a história se passe no século 19, a questão permanece atual, diz Sanches Neto. “Somos muito mais voltados para a produção de matéria-prima do que para a invenção. A inovação continua em segundo plano no Brasil.”
Homenagem a Manuel Bandeira
A existência de uma cadeia produtiva também é necessária para as artes, afirma. “O sistema é fundamental. Ele permite que as pessoas continuem acreditando no que fazem. Convivi dez anos com esse romance e sempre me perguntava: Vale a pena? Esse livro vai ter mercado? Qual o sentido disso? É papel da sociedade manter a chama da criatividade acesa, ou futuras manifestações são inibidas.”
Enquanto acompanha as oscilações de humor de padre Azevedo, ora confiante em seu invento, ora desanimado, Sanches Neto oferece vislumbres do Brasil no século 19. “Fugiu no dia 3 do corrente um escravo de nome Roque. Anda calçado, de relógio ou fita, somente fingindo”, diz uma das notícias – reais – que permeiam a primeira parte da narrativa, “Londres”. A segunda, “Nova York”, retoma a história do padre 11 anos após a viagem ao Rio.
Uma ideia, da qual Sanches Neto abriu mão em prol da concisão do livro, era que houvesse uma terceira parte: “São Paulo”, ambientada nos anos 1920. Nela, mostraria a incorporação da máquina de escrever, industrializada fora do Brasil, no meio literário nacional, com foco no modernista Mário de Andrade. “Ele era entusiasmadíssimo com sua máquina, que chamava de Manuela, em homenagem a Manuel Bandeira”, conta. “Seria a ironia do livro: mostrar o momento em que deixamos de ser os produtores para nos tornarmos os animados consumidores dessa invenção.”
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[Amarílis Lage, do Valor Econômico]