Sugeri à Flip que em 2013 homenageasse Rubem Braga. Pelos 100 anos que ele faria em janeiro e pela dívida que a nossa mais importante festa literária precisa quitar com a crônica, o gênero literário mais apreciado no país e do qual Rubem foi, indiscutivelmente, o maior expoente. Os 60 anos de morte de Graciliano Ramos, afinal, prevaleceram na escolha do próximo homenageado, ficando a crônica e seu sabiá para uma futura Flip, quem sabe a de 2014.
Por falar em efemérides, a crônica está fazendo 160 anos este mês. Apesar da respeitável tese do historiador Jorge de Sá distinguindo Pero Vez de Caminha como seu introdutor nestas paragens, a primeira crônica genuína, não epistolar e sem ressaibo folhetinesco, teria surgido na imprensa brasileira em dezembro de 1852, no jornal carioca Correio Mercantil, assinada por Francisco Otaviano de Almeida Rosa. Dois anos depois, Almeida Rosa legaria seu espaço a dois discípulos, José de Alencar e Manuel Antônio de Almeida, que nele formataram o gênero, ampliando o horizonte profissional e a clientela de jornalistas, poetas e escritores.
A forte e inevitável influência de Eça e Ramalho Ortigão sobre os primeiros cronistas daqui levou Machado de Assis a duvidar que um dia nossa crônica pudesse se abrasileirar. Mas ela, graças sobretudo ao próprio Machado, abrasileirou-se. Aos poucos nos libertamos da canga lusa, do português castiço e engomado, incorporamos toda a graça e agilidade do coloquialismo. Fundamos, sem exagero, uma nova língua a partir do português recriado nas ruas do Rio e nas conversas informais. Uma nova língua a serviço da simplificação e da naturalidade, a contemplar a vida “ao rés-do-chão” (apud Antonio Candido) e a comentá-la através de uma conversa-fiada por escrito, redimensionando os objetos e as pessoas, captando em suas miudezas “uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”.
“As coisas não têm sentido algum”
Tivemos e ainda temos perseverantes observadores da vida ao rés-do-chão; nenhum, porém, com a mesma percuciência, desenvoltura e produtividade do Velho Braga (o apelido foi dado pelo próprio Rubem quando ainda bem moço) – opinião, de resto, compartilhada até por aqueles que, por motivos muito particulares, sentem mais afinidade com outros cronistas, como é o meu caso, que sempre tive um xodó não de todo inexplicável por Paulo Mendes Campos. Mas isso é assunto para uma prosa futura.
Captadas pelo olhar de Rubem, coisas só na aparência insignificantes do cotidiano e estados d’alma enganosamente banais ganhavam nobreza e transcendência. Sua prosa divagante, encantadoramente simples, doce e cristalina, melancólica e irônica, lírica sem pieguice, tinha o condão de transformar o que quer que fosse (uma borboleta, um passarinho, um pé de milho, um antigo cajueiro, a curva de um rio, uma jovem que passa distraída) em inesperadas epifanias. Só para Rubem era fácil.
Considerava-se, sem o menor complexo, um “escritor superficial”, que escrevia “de ouvido e de palpite” sobre o que via, sobre fatos e objetos concretos, mas carente de imaginação, motivo pelo qual nunca se aventurou a produzir a sério um romance. “Não sou um homem de inventar coisas, mas de contá-las. Seria preciso talvez dar-lhes um sentido, mas não encontro nenhum. As coisas, em geral, não têm sentido algum.” Foi o que disse a respeito, numa crônica sobre pescaria, publicada em 1957.
Zagueiro truculento
Bastou-lhe, pois, a faina jornalística: além de cronista, foi repórter, correspondente de guerra (a 2ª Mundial) e paz (em Paris), editor e até dono de uma publicação no Recife de curta duração. Beneficiou-se de uma precoce ligação com os Diários Associados de Chateaubriand, que lhe deram acesso a leitores de Norte ao Sul do país. Publicou em quase todos os veículos importantes sediados no Rio, em São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, inclusive aqui, no Estado. Ter um texto do Velho Braga era sinal de distinção.
Rubem sabia o seu lugar e jamais invejou o maior prestígio acadêmico de contistas e romancistas. “Há homens que são escritores e fazem livros que são verdadeiras casas, e ficam”, comentou num artigo para o jornal alternativo Manifesto, em julho de 1951, “mas o cronista de jornal é como cigano que toda noite arma sua tenda e pela manhã a desmancha, e vai.” Tampouco perdia tempo e saliva teorizando sobre seu ofício. Ao primeiro repórter que lhe pediu para definir a crônica, respondeu: “Se não é aguda, é crônica.”
Também se autodepreciava como um “sujeito distraído e medíocre”, meio antipático (“Se eu conhecesse outro sujeito igual a mim, nossas relações nunca chegariam a ser grande coisa”), desajeitado e sonso – ou mocorongo e songamonga, como ele próprio gostava de dizer. Casmurro e rabugento, parecia de fato um urso, não polar, mas solar, apaixonado que era por dias claros e pela Praia de Ipanema que avistava de sua legendária cobertura agrícola na Rua Barão da Torre.
Mesmo alheio a fervorosas convicções ideológicas e espirituais, “nem cristão, nem comunista”, acabou envolvido em encrencas políticas antes e durante o Estado Novo. Antigetulista ferrenho, de uma feita precisou de salvo-conduto para atravessar a fronteira de Minas Gerais com o estado do Rio e, safo, valeu-se, com êxito, de uma carteira de jogador reserva do Flamengo. Se verdadeira ou falsa, não sei. Sabe-se que foi um zagueiro viril, beirando o truculento, de um time de pelada das areias de Copacabana, no imediato pós-guerra, que no gol tinha Di Cavalcanti e, na linha, Fernando Sabino, Orígenes Lessa, Newton Freitas, Moacyr Werneck de Castro e Paulo Mendes Campos. Craque indiscutível, Rubem só o foi nas páginas de jornais e revistas.
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[Sérgio Augusto é jornalista]