Nossas férias em Santarém podiam ter servido de tema para deliciosos romances se houvesse algum Mark Twain entre nós. No meio de toda a primalhada & amigos, que se reunia em julho ou no fim de ano, havia gente sempre disposta a aventuras e brincadeiras, nem todas inocentes. Mas algumas peças eram muito bem boladas.
Um dos primos era (e continua a ser) a pessoa mais crédula e ingênua que já encontrei na vida. Certo dia, bolamos uma arte: anunciaríamos para o primo (poupo-lhe o nome para consumo externo) que um submarino emergiria bem em frente ao velho trapiche da cidade exatamente às cinco horas (A las cinco de la tarde/ Eran las cinco en punto de la tarde, como no maravilhoso poema de Federico Garcia Lorca, de lamento pela morte do toureiro Ignacio Sanchez Mejías, publicado com imensas e magníficas fotografias por Life naquela época).
Para fazer fé no feito, disse que a Seleções do Reader’s Digest era a fonte da informação. Se a famosa revista americana dizia, era por ser verdade, sem direito a contestação. Seleções circulava aos milhões por todo mundo, chegando sem falta a Santarém e sendo lida com devoção por um grupo de pessoas, dentre as quais me incluía.
Nosso primo não cedeu às ponderações dos irmãos, pais e quaisquer outros interlocutores que tentaram poupá-lo da gozação. Pontualmente, às cinco, com o seu melhor traje, lá estava ele a vasculhar as águas do belíssimo Tapajós, que ia e vinha sobre areia fofa e alva. Nada de periscópio ou muito menos quilha de submarino.
Já não contendo a gargalhada, o bando saiu de trás das mangueiras e correu sobre o primo para gozá-lo. Impassível, ele se desviou dos moleques e seguiu de volta, confiante, à sua casa. Devia ter acontecido alguma coisa com o submarino para que ele não aparecesse na pacata cidadezinha de beira de rio. Era a única explicação que o primo encontrava para não se ter cumprido o vaticínio de Seleções. A revista nunca errava, ou mentia.
Papel de primeira
O episódio dá uma ideia do que foi o prestígio de Seleções, revista mensal criada em 1922, sobretudo a partir do ingresso dos Estados Unidos na guerra europeia. A revista continua a circular e a ter uma vistosa vendagem, mas já não serviria de suporte para uma brincadeira como aquela que armamos no alvorecer dos anos 1960. Não era só a revista, em formato pequeno, bem impressa, costurada melhor ainda, fácil de ler, por todos os motivos, exceto, talvez, se fosse encarada com rigor crítico, que nós não tínhamos então.
Mas não era só o magazine que fazia a nossa cabeça. Havia ainda a Biblioteca de Seleções, em formato de livro, capa dura, que trazia a condensação de quatro livros por edição, mensal. O primeiro livro da coleção saiu no Brasil em 1957, nos anos JK, marcados pela confiança, a alegria, o entusiasmo e a indústria automobilística, como símbolo de prosperidade made in USA (embora as grandes montadoras americanas, surpreendidas pela antecipação dos fabricantes europeus, tivessem que recuperar espaço engolindo as empresas pioneiras do setor).
Eu comprava os exemplares da Biblioteca de Seleções quando podia. Em férias, lia os que encontrava na casa de parentes, principalmente da minha tia leitora, Aida, e de amigos da estirpe, como David Moraes. Mantive ou recuperei todos os livros até 1968. Não por acaso, foi o ano do AI-5, que terminou de comprometer a qualidade da biblioteca, já afetada pelo golpe militar de 1964. Um dos volumes que comprei em sebos pertencia à Associação das Antigas Alunas do Colégio Sion, na rua Cosme Velho, 98, no Rio, centro de formação da elite feminina carioca.
Mas como, perguntará o leitor incrédulo. Não se tratava de propaganda americana, com origem no USIS, Usaid ou na CIA (esta, denunciada num livro contundente, Quem pagou a conta?. de Frances Stoner Saunders)? Sim, era o pregão do american way of life, mas mediado por cuidado cultural, preocupação com a imagem, valorização dos participantes e certa tolerância para estranhos ou até adversários, reais ou potenciais.
Antes de se militarizarem até os dentes, os americanos acreditavam nos seus valores morais, éticos e culturais o bastante para, exibindo-os, achar que formariam mentalidades e tomariam conta de mentes. Pareciam ainda dispostos a agregar civilização aos produtos que exportavam. Confiavam na superioridade para vencer a guerra fria. Até abandonarem essas “frivolidades” e partir definitivamente para o big stick, o porrete.
Os livros da biblioteca de Seleções eram selecionados pelos critérios de poder de Washington, mas cediam uma vez ou outra ao primado do valor dos escritores. As traduções eram excelentes, na maioria das vezes, entregues a profissionais competentes ou a escritores. As ilustrações transmitiam harmonia no traço, simplicidade cativante e o design das grandes agências de propaganda. Alguns ilustradores, além disso, eram verdadeiros artistas.
Lia-se com facilidade e prazer os livros, mesmo que fosse apenas para entretenimento (e, às vezes, completa alienação). As páginas não sacavam, os tipos gráficos eram adequados, o papel era de primeira e havia até um ex-libris como prenda. À parte o material mais ideológico, mesmo quando resumidas, algumas histórias eram interessantes e instrutivas. Especialmente os romances históricos.
Uma curiosidade
Impresso na Editora Ypiranga, do Rio de Janeiro, de primeira qualidade, o primeiro volume trouxe as seguintes condensações: Silêncio sinistro e fundo, escrito pelo comandante Edward L. Beach e traduzido pelo também comandante A. B. de Vasconcelos. Sombra do velho ídolo, de Augusta Walker, tradução do grande crítico paulista Sérgio Milliet. Minha prima Rachel, de Daphne du Maurier, na versão da romancista cearense Rachel de Queiroz (que também traduziu Carol, de Peter de Vries, e Quase um anjo, de Barbara Jefferis). Entre feras e demônios, de Stuart Cloete, por Vera Pacheco Jordão.
Nada apetitoso? Pois então, que tal O último dos maçaricos, de Fred Bodsworth, traduzido pelo sr. João Guimarães Rosa? O livro saiu originalmente em 1954, editado em Nova York por Dodd, Meade & Co., uma das muitas pequenas, médias e boas editoras que havia nos Estados Unidos. Talvez seja uma das maiores dentre as poucas traduções feitas pelo autor de Grande Sertão: Veredas. Tem 35 páginas.
E mais nas edições seguintes até 1968, que devem deixar embasbacados os mais ortodoxos:
Dois soldados e A travessia de Hell Creek, do clássico William Faulkner, o último dos dois livros traduzido por José J. Veiga. Trabalho de 1965, dois anos antes de o escritor goiano (que também foi editor da revista semanal) estourar com A hora dos ruminantes, a melhor novela que já li em língua portuguesa (foi meu trabalho escolar no 2º clássico no Colégio André Maurois, no Rio, por indicação do professor Ivo Barbieri, depois reitor da Universidade Federal Fluminense, antes sofrendo um pouco do chumbo daqueles anos de repressão à inteligência).
A ilha nos trópicos, de Alec Waugh, traduzido por ninguém menos que Otto Maria Carpeaux, o maior crítico que já atuou no Brasil, de origem vienense, de esquerda, por isso emigrado da Europa de Hitler.
Demolidores de barragens, de Paul Brickhill, por Guilherme Figueiredo, teatrólogo, crítico mordaz e irmão do general João Figueiredo, o último dos presidentes do regime militar.
Aventuras em dois mundos, A. J. Cronin, A leste do Éden, John Steinbeck, O século do cirurgião, Jürgen Thorwald, e O arco íris e a rosa, de Nevil Shute, foram todos eles traduzidos pelo grande poeta Manuel Bandeira, que ganhou seus bons trocados por esse trabalho.
Um caso de tradução insatisfatória foi o deO inverno dos descontentes, de John Steinbeck. Limeira Tejo foi muito literal e estreito a partir do título do livro, The winter of our discontent, publicado nos EUA em 1961. O inverno de nossa desesperança, da Editora Civilização Brasileira, foi bem melhor. Na Reader’s foi em 1965.
Palmas para o inimigo, de Pamela Frankau, passou para o português pelas mãos competentes do jornalista e escritor Antonio Callado, tão de esquerda quanto Carpeaux.
Os caminhos de Deus, Kathryn Hulme, e Amado e glorioso médico, de Taylor Caldwell, brilharam com Cecília Meireles.
Matriz de bravos e Avalon, Anya Seton, e A segunda aurora, de Alistair MacLean, foram traduzidas por Clarice Lispector, que assim ganhava a vida e fôlego para sua obra incomparável.
Nossa ilha virgem, de Robb White, por Rubem Braga, o cronista dos cronistas.
Os braços de Vênus, de John Appleby, pelo excelente crítico português Adolfo Casais Monteiro.
Harry Black, de David Walker, pelo iniciante crítico Leo-Gilson Ribeiro, com o hífen e tudo, antes de sua temporada alemã.
Os galgos de Gabriel, Mary Syewart, pelo poeta Ivan Junqueira, presidente da Academia Brasileira de Letras.
O mar cruel, de Nicholas Monsarrat, por Herbert Caro, talvez o maior dos nossos tradutores, especialmente do alemão.
O FBI de ontem e de hoje, Don Whitehead, e Esta noite vou matar Lincoln, Jim Bishop, por Carlos Lacerda.
Uma história de pardais, de Rummer Godden, A bruxa de Mount Mellyn, de Victoria Holt, e Fora, pioneiros!, de Richard Powell, pelo irmão por parte de pai de Carlos, Maurício Caminha de Lacerda.
Para onde vai a chama, John Hersey, e A chave no jarro, de Winston Graham, pelo também jornalista (e político) Hermano Alves.
Com a cruz alheia, de Daphne du Maurier, por um semelhante de Hermano, mais famoso, Márcio Moreira Alves, cujo discurso infantil serviu de pretexto para o AI-5.
Minha vida no céu, de Ernest Gann, pelo pasquineiro britânico Ivan Lessa, recentemente falecido.
A noite dos homens, de Frank G. Slaughter pelo pai de Ivan, Orígenes Lessa (sua mulher, Elsie, também produziu várias traduções).
Uma curiosidade:O mundo do silêncio, do capitão J. Y Costeau, apareceu no segundo volume da biblioteca, em 1957, quando o oceanógrafo começava suas expedições pelos mares.
Ou Letra e música, autobiografia de Bing Crosby.
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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]