“Sou um homem quieto, o que eu gosto é ficar num banco sentado, entre moitas, calado, anoitecendo devagar, meio triste, lembrando umas coisas, umas coisas que nem valiam a pena lembrar.” Assim se descrevia Rubem Braga, considerado por muitos um dos maiores cronistas do Brasil, cujo centenário de nascimento é celebrado neste sábado. O escritor morreu aos 77 anos, em 1990, vítima de um tumor na laringe que preferiu não operar, não sem antes encomendar a própria cremação e se despedir dos amigos.
Ainda moço, passou a se denominar “o velho Braga” e ajudou a construir a imagem de casmurro. O ar taciturno e a figura grande e desajeitada pareciam incompatíveis com os escritos delicados e cheios de poesia que diariamente traziam seu nome nas páginas dos jornais. “Ele era extremamente reservado. Nunca vi o Rubem se referir a alguma coisa que tivesse escrito. Era, desde cedo, por natureza, assim”, conta o engenheiro Álvaro Abreu, de 65 anos, sobrinho do escritor. Segundo Abreu, o tio era uma pessoa que falava pouquíssimo, mas observava muito. “Era muito afável, curioso e prezava muito as amizades. Cultuava o convívio, embora fosse reservado. E, isso sim, era uma pessoa que nunca sorria, uma pessoa sem graça. E nunca falava mal de ninguém.”
Além de ensimesmado, o “velho Braga” tinha também fama de boêmio e mulherengo. “Ele se transformava quando via uma mulher”, recorda o sobrinho. Sobre a boemia, um dos episódios que ajudam a reforçar a imagem é a anedota da BMW que foi “bebida” por Rubem e os amigos que frequentavam sua lendária cobertura em Ipanema. Funcionário diplomático em Marrocos no começo dos anos 60, o cronista recebeu do governo o privilégio de trazer um carro que tinha comprado no país africano. Assim que o automóvel chegou ao Rio, foi vendido. Conta a lenda que em um ano o carro foi consumido pelo grupo. “Eles chegavam à casa do meu tio e diziam: ‘Hoje vamos beber o para-choque’. No outro dia, abriam uma garrafa e tomavam a lanterna. E assim foi”, diverte-se.
Pouco espaço para a crônica
Os mais de 20 livros de Rubem Braga, todos compilações de crônicas, ajudaram a consolidar seu nome entre os maiores literatos brasileiros, embora ele mesmo, por pura humildade, não se considerasse escritor. “Confesso que escrevo de palpite, como algumas pessoas tocam piano de ouvido.” Foram cerca de 15 mil crônicas, sobre os temas mais diversos e muitas vezes sobre tema algum. O amigo Manuel Bandeira disse certa vez que Braga era sempre bom, mas quando não tinha assunto era ótimo.
Durante 62 anos, Rubem Braga escreveu crônicas e fez do gênero considerado menor sua marca. “Tenho para mim que ele é muito mais importante para a literatura brasileira do que se pensa. Tinha muito claro o lugar que a crônica ocupa dentro do mundo da literatura e, apesar da pressão dos amigos – como se escrever romance fosse o passo seguinte –, sempre disse que estava realizado fazendo o que fazia: escrevendo crônicas”, diz o escritor e crítico literário José Castello.
Autor do livro Na Cobertura de Rubem Braga, que será reeditado pela Record para o centenário do cronista capixaba, Castello defende a importância de uma volta à crônica: “Não sei se é por falta de espaço nos jornais, por falta de novos cronistas, ou por uma decisão editorial, mas o fato é que há pouco espaço na imprensa para a crônica. E é preciso lê-las e pensar nessa figura do cronista, pensar no Braga. Retomar contato com isso é fundamental. As pessoas estão precisando disso.”
Cronista na Itália
Se em seus textos, mesmo em sua fase jovem, Braga esbanjava nostalgia e se apresentava como uma alma velha, parece que hoje, com a velocidade do mundo, essa sensação se estende a seus leitores: narra um mundo que não existe mais. “A crônica, um gênero tipicamente brasileiro, é, antes de tudo, um tema contemplativo e íntimo. No mundo ansioso em que vivemos, parece que não há tempo para a observação, não há tempo nem para escrever nem para ler crônicas”, opina Castello.
Mas, além do cronista que escreveu sobre a beleza das mulheres, do mar e dos passarinhos, há outro Rubem Braga ainda a ser explorado, defende a jornalista e pesquisadora Ana Karla Dubiela, de 58 anos, autora de três livros sobre o escritor. “Há um período de crítica social, principalmente nos primeiros anos de seus escritos, que ainda não foi explorado devidamente.”
Para Ana Karla, há um desconhecimento de passagens da vida de Braga que as diversas homenagens programadas para comemorar o centenário podem ajudar a esclarecer. “Dizem que ele foi correspondente de guerra, mas isso está errado. Ele foi cronista na Itália, não deu nenhum furo de reportagem, mas retratou com extrema poesia o que via.”
“Muitos anos…”
Como sempre fez em outros cenários, o que fez durante a Segunda Guerra, no front, foi observar. Preferiu retratar o cotidiano dos soldados (as cartas às namoradas, a procura por saber o resultado do Fla x Flu) a narrar grandes acontecimentos. Em um de seus textos, intitulado A Menina Suzana, descreveu com maestria a dor de ver uma garota de 10 anos atingida por uma granada: “A cabeça de Silvana descansava de lado, entre cobertores. A explosão estúpida poupara aquela pequena cabeça castanha, aquele perfil suave e firme que Da Vinci amaria desenhar.” Na fase mais lírica ou mais crítica, o fato é que Braga foi capaz de construir, a partir do banal, um mundo poético e encantador. Retratou um universo muito distante do atual.
Agora centenário, o “fazendeiro do ar” – apelido que ganhou por causa do jardim, transformado em horta, que cultivou em sua cobertura – receberá diversas homenagens, não só em sua terra natal, mas em todo o país. A pompa com que cercam o centenário provavelmente o incomodaria. “O Braga não tinha dengo, detestava puxar o saco, era muito autônomo”, conta Abreu.
É possível que de sua cobertura em Ipanema assistisse calado às comemorações, cheio de nostalgia, e repetisse uma de suas geniais frases: “Ultimamente têm passado muitos anos.”
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[Ricardo Viel, para o Valor Econômico, de Madri]