O cronista Rubem Braga (1913-1990) que no último dia 12 completaria 100 anos de idade foi um apaixonado por joelhos femininos. Não um joelho qualquer. Desses que se encontram diariamente nos lugares distintos. O cronista tinha bom gosto e apreciava aqueles de pele morena, lisos, esteticamente certinhos, torneados na régua e compasso.
Não fazia concessões. Tinha que ser desse jeito. Questão de gosto. Escrevendo sobre o assunto confessou: “Aquele não era agudo nem largo, nem alto, era um joelho suave, mas com algo poderoso, mais do que faria prever a delicadeza daquela moça.”
E quem era a moça? Diz o seu biógrafo Marco Antonio de Carvalho Braga: Tônia Carrero, que se achava no auge do esplendor, como mulher e artista. Trabalhou na produtora de filmes Atlântida, década de 50. Um adendo do biógrafo referindo-se ao autor de As boas coisas da vida: “Muita amizade pelos joelhos da atriz”. E só?, pergunto eu. O que se sabe aqui fora é ter havido entre os dois uma amizade ou amor escondido, que ambos desmentiam.
Como se deu o olhar de Rubem Braga, por essa parte do corpo? A atriz levou um tombo e caiu. Ralou o joelho esquerdo. Braga aparece misteriosamente para erguê-la e fê-la sentar num banco. Tirou o lenço limpo e o embebeu em água de pequena bica e limpou o ferimento. Sentiu prazer em fazer isso: “Havia no joelho moreno a mancha vermelha.” Ficou um instante, extasiado, a olhar o joelho, e pensou como são diferentes os joelhos das mulheres. No final da crônica de título Joelho ele distorce o episódio como a guardar segredos: “Eu tenho uma grande amizade pelo seu joelho esquerdo.” E o direito? Grande e misterioso Braga!
Intelectuais da pesada
O cronista nasceu na terra de Roberto Carlos, o cantor das canções com letras mais bonitas que um artista é capaz de produzir, lá em Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo. Começou a escrever cedo, ainda, como estudante do antigo ginásio. Criou gosto por viajar e mandou-se para Belo Horizonte, Recife, São Paulo e Rio de Janeiro. Sempre ligado a jornal e a crônica. Credenciado pelo jornal Diário Carioca viajou à Itália, como correspondente de guerra.
Em 55 mudou-se para o Chile e trabalhou na embaixada do Brasil. Depois, fixou-se por um ano, na mesma função, em Paris. Aproveitou para colher material jornalístico sobre literatura, artes plásticas e personalidades francesas e enviava para jornais e revistas do seu país. Conviveu com a fina flor da intelectualidade do velho mundo, entre outros: Sartre, Picasso, Valéry, Gide, Colette, Claudel, Mauriac. Por último serviu como embaixador do Brasil em Marrocos.
Rubem Braga é um fenômeno como cronista, especialidade que merece críticas, por ser a crônica considerada um gênero menor da literatura. Ele nunca quis ser romancista, contista etc. E se o fizesse se consagraria pela plasticidade na elaboração dos textos. A tese de que a crônica é para consumo de um dia e jogada fora no outro é falácia. Braga provou o contrário. Pode alcançar perenidade, se criativa. Chamam-no com justiça, o Sabiá da crônica brasileira. Quem conhece o canto dessa ave impressiona-se com o trinado, rico de agudos e graves.
Teve uma vida proveitosa, boemia, ao lado de amigos famosos que formavam um grupo de intelectuais da pesada. Todos a favor da cachaça como produto nacional. Volto a ler a crônica inspirada no joelho de Tônia Carrero, cuja paixão e mistério se consumiram nas cinzas do seu corpo cremado, jogadas ao vento, no mais puro silêncio numa tarde outono.
***
[Sebastião Jorge é professor universitário e jornalista]