A coleção de livros de bolso “Folha Explica” pretende dar explicações sobre os mais variados assuntos. Explica a vida de pessoas como Villa-Lobos, Marx, Machado de Assis ou Roberto Carlos. Explica temas como a Máfia, o Islam, a Moda, a Democracia, a Magia, o Malufismo ou a Menopausa. Agora, num livro lançado no ano passado, a Folha de S.Paulo tenta explicar a si mesma.
A iniciativa é curiosa. Os jornais, quando se consideram suficientemente importantes, costumam encomendar obras sobre sua história. Outros, como Financial Times, The New York Times, The Washington Post, The Wall Street Journal quiseram marcar datas relevantes, como seu centenário, com um livro. A própria Folha de S.Paulo encomendou um para seus 60 anos. Mas são obras comemorativas, não explicativas.
Tentativas de ensinar o leitor a ler o jornal foram feitas pelos diários de economia para ajudá-los a entender os dados, gráficos, índices e tabelas de temas como produto interno bruto, formação bruta de capital fixo, meios de pagamento ou simplesmente a destrinchar a cotação das ações. São obras sobre uma parte do conteúdo do jornal, que não explicam o jornal em si.
Folha Explica Folha pretende mostrar ao leitor como é o jornal que lê. Conta rapidamente a história da Folha e de seus proprietários, a linha editorial, o perfil do leitor, como é feito o jornal e as dimensões do grupo. A edição é cuidada e o livro bem escrito e fácil de ler. A autora, Ana Estela de Sousa Pinto, é jornalista da empresa, editora do caderno Mercado da Folha.
O capítulo mais interessante, pelo menos para o autor desta resenha, é a história do jornal, que ocupa quase metade do livro. Numa narrativa fluente, condensa, como obra de divulgação que é, informações já publicadas. Repetem-se então, sem esclarecer, episódios ainda obscuros, como algumas trocas de controle acionário. Mas a autora não deixa de relatar momentos difíceis da Folha e trata de maneira direta alguns episódios traumáticos, sobre os quais há informações originais.
A Folha da Noite foi lançada em fevereiro de 1921 por Olival Costa e Pedro Cunha, para ocupar o lugar da edição vespertina de O Estado de S.Paulo, que fechara poucas semanas antes. Fizeram um jornal popular, independente, de tendência liberal e nacionalista, para os trabalhadores urbanos, e de oposição ao governo federal. Em 1925, lançam a Folha da Manhã, para profissionais liberais e pequenos comerciantes.
Em 1929 houve uma mudança repentina na orientação política. As “Folhas”, antes na oposição, passam a apoiar o governo federal de Washington Luís e a candidatura de Júlio Prestes, presidente de São Paulo, à Presidência da República, atacam a Aliança Liberal e Getúlio Vargas, pelos quais tinham simpatias, e combatem medidas, como o voto secreto, que até então apoiavam. O livro explica esse episódio remetendo-se à história oficial do jornal, que vê na mudança “coerência com dois princípios caros ao jornal”: o pressuposto da ordem e a defesas dos interesses paulistas. A autora menciona também a versão de Francisco Pati, antigo colaborador e amigo de Olival, de que, apoiando Washington Luis e Prestes, Olival queria defender São Paulo.
Esses argumentos fazem pouco sentido. Jornais como O Estado de S. Paulo e o Diário Nacional eram também defensores da ordem e dos interesses paulistas, e combateram Washington Luís e apoiaram a Aliança Liberal.
Impresso e digital
A história oficial menciona a coincidência da mudança da posição política das “Folhas” com a saída de Pedro Cunha da empresa nesse mesmo ano e especula se há relação entre os dois fatos. Aparentemente, não houve coincidência: os dois fatos estão interligados. Cunha disse que saíra “por divergência” com seu sócio, que impunha sempre sua vontade. Com o dinheiro recebido, ele comprou o jornal A Platéa, que era defensor de Washington Luís e Júlio Prestes, imediatamente mudou sua orientação e passou a defender a Aliança. Exatamente a trajetória oposta à das “Folhas”.
Jornais de São Paulo que davam suporte a Washington Luís e Prestes, como o Correio Paulistano, A Gazeta, e a edição paulista do Jornal do Commercio, receberam ajuda do governo do Estado. Não é demais perguntar se as “Folhas” também pediram e receberam ajuda.
“A mudança de donos na Folha em 1945 está cercada de histórias de intriga e traição”, tendo Getúlio Vargas como pivô, segundo o livro. É uma observação apropriada, digna de um romance de mistério. Foi uma operação com testas de ferro que se consideraram donos, financiamentos pouco claros, estranhos acertos contábeis e brigas de acionistas nas páginas das próprias “Folhas”. Até hoje, não foram esclarecidos alguns episódios durante a troca de controle da empresa: como realmente o conde Francisco Matarazzo, que tinha uma parte da sociedade, foi passado para trás; como José Nabantino Ramos, sem dinheiro, financiou a compra das ações dos sócios; qual foi o papel do presidente Eurico Dutra.
Nessa fase de mudança de controle, o secretário-geral da redação, o trotskista Hermínio Sacchetta, liderou a saída de dezenas de jornalistas das “Folhas” depois que o dono, Octaviano Alves de Lima, lhe informara que estava vendendo os jornais. Ele discordou da venda “de porteira fechada”, inclusive os empregados. Achava que os jornais ficariam a serviço de Getúlio Vargas. Cláudio Abramo, seu amigo e trotskista como ele, comentaria em suas memórias que Sacchetta acreditava que, com Matarazzo como acionista, o jornal iria defender os interesses da grande indústria: “O que é típico, aliás, das hesitações e erros de análise da esquerda brasileira; eles achavam que defender os industriais era menos nobre do que defender a oligarquia rural, representada por Octaviano Alves de Lima, que era fazendeiro de café. Uma dessas ingenuidades que a esquerda comete”.
A obra menciona o papel que teve Nabantino Ramos, insuficientemente reconhecido por outros autores, na consolidação das “Folhas”: o programa de ação, os controles internos, as normas de trabalho, a renovação da infraestrutura, o lançamento da “Folha da Tarde”, as campanhas realizadas e, principalmente, a unificação dos três jornais na Folha de S.Paulo, medida sem a qual não estaria em condições de brigar pela liderança.
Octavio Frias de Oliveira, que em 1962 tinha comprado a Folha, associado a Carlos Caldeira Filho, decidiu renovar o parque gráfico. Frias tinha visto um catálogo com rotativas “off set” em 1962, mas fora desaconselhado a comprar, pelos representantes no Brasil, por serem demasiado modernas. Decidiu pelo novo equipamento quando, numa viagem ao Japão, viu como funcionava a impressão “off set”. Esta informação do livro, de como Frias optou pela tecnologia mais moderna, é nova.
Mas não é certo, como diz a autora, que o sistema “off set” foi usado pela primeira vez em jornais da América Latina para imprimir o Cidade de Santos, um jornal do grupo, em julho de 1967. Antes, já tinha sido usado no São Paulo Shimbun, jornal em japonês, no Correio Braziliense e no Brazil Herald. Na América Latina, o pioneiro foi o BP Color de Montevidéu.
Embora o livro não entre em detalhes da história do jornal, a autora pesquisou e publica informações originais sobre um dos pontos mais polêmicos do passado da Folha, a alegada colaboração com os órgãos da repressão durante a ditadura militar. Em 1971, três caminhonetes do jornal foram incendiadas por membros da Aliança Libertadora Nacional (ALN), sob a alegação de que os jornais da empresa haviam tratado o capitão Carlos Lamarca, um dos líderes da guerrilha urbana, morto nesses dias, como ladrão, assassino e criminoso. Mandaram um recado: “Pode avisar o sr. Frias que nós vamos apagá-lo”; depois afirmariam que não queriam matá-lo, apenas sequestrá-lo, para trocá-lo por prisioneiros. Frias publicou, na primeira página da Folha, o primeiro e único editorial assinado por ele, com o título: “BANDITISMO”.
Militantes da ALN disseram que a Folha emprestava carros para vigiar e prender militantes, e que nas emboscadas da repressão havia carros do jornal. Dois militantes asseguraram, em entrevistas, terem visto caminhonetes da empresa no prédio do Departamento de Operações Internas – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).
A respeito do empréstimo de carros da Folha às forças da repressão, Frias declarou em 2001 que, se isso aconteceu, foi sem o seu conhecimento. Otavio Frias Filho, diretor de redação, disse em 2006 ser possível que os veículos do jornal tivessem sido usados pela polícia para fazer campana e prender pessoas e tinha a convicção de que isso foi feito à revelia de seu pai e de Caldeira.
Ana Estela diz que não existem fotografias ou documentos que atestem ou descartem a colaboração do jornal com a repressão e que em mais de um ano de pesquisa não encontrou, nem nos arquivos da ditadura nem nos jornais clandestinos da guerrilha, nenhuma menção a empréstimos de carros da Folha. Ela também entrevistou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, então major e diretor do DOI-Codi. Segundo ele, “jamais uma viatura do Grupo Folha entrou no DOI ou fez qualquer trabalho para nós”. O assunto continua controverso, como ela diz.
O livro menciona a virada editorial em meados dos anos 1970, quando a Folha deixou de ser um jornal anódino para se transformar num porta-voz da abertura, com Cláudio Abramo na direção, “a pessoa certa”. Destaca a independência e pluralidade da Folha durante o período conhecido internamente como a “Primavera de Praga” – numa referência ao curto ciclo de liberalização política na capital da então Tchecoslováquia, em 1968 –, que terminou nos finais de 1977, quando uma crônica de Lourenço Diaféria incomodou a linha dura e pressões sobre o jornal levaram à troca da cúpula, com a saída de Abramo, substituído por Boris Casoy.
A autora diz que a circulação da Folha superou pela primeira vez a de seu principal concorrente, O Estado de S. Paulo, provavelmente entre o final de 1982 e início de 1983, durante a gestão de Casoy. No entanto, em 1961 a Folha já dizia ser o jornal de maior circulação do país, de terça-feira a sábado – perdia apenas no domingo para um jornal paulista, certamente o Estado, e na segunda-feira para um vespertino carioca, talvez O Globo.
Ela relata também episódios como o momento traumático que foi a adoção do “projeto Folha”, a introdução de controles e do manual da redação e a substituição de Casoy por Otavio Frias Filho; a guerra com o Estado pela liderança editorial e comercial; a invasão do jornal durante o governo Collor; a fundação, problemas e crescimento do Universo Online (UOL); a severa crise econômica, que levou a empresa a ter em 2001 seu primeiro prejuízo desde que fora comprada por Frias e Caldeira em 1962, sendo o primeiro jornal a sair dela, entre 2007 e 2008.
No capítulo dedicado aos proprietários da Folha, o livro publica o perfil de Olival Costa, mas deixa de lado o de Pedro Cunha, cuja presença na empresa não foi menos importante. Nabantino, que de fato foi a alma das “Folhas” durante 17 anos, foi incluído nessa galeria, mas o leitor não ficaria desapontado se nela encontrasse também o conde Francisco Matarazzo, que provocou atritos com seus sócios precisamente por querer agir como dono. Da última fase do jornal consta o perfil de Octavio Frias de Oliveira, mas não a de seu sócio, Carlos Caldeira Filho.
Um tópico interessante é o dedicado à adaptação do jornal, tanto na versão impressa como na digital, para enfrentar o futuro. A Folha não pretende tornar-se um jornal elitista, para um público mais rico e educado; prefere encarar as incertezas da nova era apelando para um mercado mais amplo como uma publicação que dê um resumo dos eventos mais importantes das 24 horas anteriores, incentivando a investigação e as informações exclusivas.
Novos voos
Em 2010 entrou numa fase multiplataforma e colocou um pé no rádio e TV. A Folha, diz, não se vê unicamente como um jornal impresso. Produz informações 24 horas por dia e as distribui por todos os meios disponíveis de comunicação. Era em 2011, segundo o livro, o segundo jornal do mundo com mais seguidores no Facebook, atrás somente do The New York Times.
Foi adotado o modelo do The New York Times de cobrança pelo conteúdo colocado na internet, antes dado de graça, mas mantendo parcialmente o acesso gratuito. Segundo a empresa, a iniciativa está dando bons resultados. Mas falta ver se esse modelo é suficiente para enfrentar o desafio provocado pela mudança de um paradigma de 200 anos, pelo qual a principal fonte de receita dos jornais era a publicidade. Agora, com os anúncios saindo da mídia impressa e migrando para outras mídias, os jornais terão que encontrar uma maneira de passar a depender mais da venda de conteúdo – impresso ou digital. Neste caso, o conteúdo da Folha será suficientemente atraente ao ponto de proporcionar uma receita que compense a queda da publicidade?
Por enquanto, a empresa enfrenta o futuro diversificando: vende livros e CDs nas bancas de jornais, faz pesquisas pelo Datafolha, aproveita a frota de veículos para entregas de terceiros. Estas atividades representam uma crescente proporção das receitas.
As pesquisas da Folha mostram que a idade média dos leitores vem subindo. No entanto, quando os leitores são colocados ante a frase “Jornal é coisa de gente muito velha; jovem só se informa pela TV e pela internet”, são os mais novos que discordam dela com maior veemência; nove de cada dez leitores com menos de 30 anos consideram o jornal impresso imprescindível para inserir-se no mercado de trabalho. Esta informação é um indício de que os jornais são pouco competentes na comunicação com os jovens e não conseguem mostrar-lhes que o seu conteúdo é de interesse para eles.
A autora explica de maneira viva e atraente como funciona a redação da Folha, como é feito o jornal, qual é o caminho da notícia até chegar às mãos do assinante. Mas o leitor do livro fica sem saber como é a estrutura da redação, quantos jornalistas a Folha tem no total, quantos repórteres, como são e como funcionam as sucursais, como é o quadro de correspondentes no exterior, por que tem tantos colunistas.
O livro, como indicado acima, é bem cuidado e a autora evita várias informações incorretas comuns à maioria das obras publicadas sobre a Folha, mas inevitavelmente deixou passar alguns erros de importância secundária, como afirmar que no começo da década de 60, quando foi construída a estação rodoviária de São Paulo, a avenida Ipiranga era uma rua ainda estreita. Já era a atual avenida Ipiranga.
Os leitores têm em Folha Explica Folha uma boa explicação sobre seu jornal. É uma obra de menor ambição, dado o escopo da coleção em que foi publicada, mas de qualidade bem superior à da História da Folha de S. Paulo (1921-1981), publicada quando completou 60 anos. É uma pena que agora a Folha, para falar sobre ela mesma, não tenha tentado voos mais altos. A menos que, para fazer isso, esteja esperando pelo seu centenário, dentro de oito anos.
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[Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição]