É difícil encontrar uma cidade norte-americana mais litigiosa do que Nova York. Prefeitos anunciam megaprojetos que nunca saem da maquete porque vereadores, associações de bairro e diversos grupos de interesse montam uma resistência tão ruidosa quanto eficaz. Quando lhe mostraram um vídeo de pontos de ônibus cariocas que havia projetado, o grande arquiteto modernista Richard Meier ficou admirado: “Fiz esse projeto para Nova York há dez anos”, disse. “Tudo se obstrui nesta cidade.” Quem sabe, Meier pode convidar o colega Norman Foster para desabafar mágoas em escala bem maior. Sir Norman Foster, o famoso arquiteto autor de várias adições a prédios históricos, como o British Museum, em Londres, e o Reichstag, de Berlim, não está sendo tratado em Nova York com a gentileza esperada por cavaleiros da Ordem Britânica. Ele é o responsável pelo plano de renovação de um dos mais queridos prédios históricos do país, a sede da Biblioteca Pública de Nova York, inaugurada em 1911. O prédio fica na esquina da Quinta da Avenida com a Rua 42.
Que tal ser acusado, na primeira página do New York Times, o jornal que ainda é árbitro de crítica cultural norte-americana, de fazer transplante usando um grande edifício como cobaia? Doeu, como mostrou a magoada resposta enviada pelo arquiteto ao Times.
O plano de renovação da Biblioteca começou há cinco anos e estourou as projeções do orçamento, que já passou de US$ 300 milhões e continua crescendo. Nos últimos anos, as grandes bibliotecas conhecidas como polos de pesquisa tiveram de enfrentar dois frontes adversários. A recessão mundial, que cortou drasticamente as despesas públicas com cultura e educação. E a necessidade de se adaptar a novas tecnologias, fazendo aquisições sem desvalorizar suas coleções de papel. A biblioteca nova-iorquina tinha outro problema. Um prédio de sete andares caindo aos pedaços, do outro lado da avenida, frequentado por 1,5 milhão de pessoas por ano e que concentra uma das maiores coleções de livros para empréstimo, periódicos, vídeos e áudios do sistema de bibliotecas de Nova York.
Máquinas de cappuccino
Como o terreno é altamente valorizado e uma reforma seria inviável, a decisão foi vender o prédio e apertar as duas coleções – a de empréstimo e a de pesquisa na majestosa sede guardada pelos dois leões de mármore, batizados de Fortitude e Paciência. Como a virtude não se impõe à física, e uma segunda filial da biblioteca, na Rua 34, também vai ser fechada, ao anunciarem a decisão de despachar 1,5 milhão de volumes da área de pesquisa na sede para um depósito em Princeton, o coro dos descontentes engrossou consideravelmente.
Em maio, um abaixo-assinado com mais de 700 escritores e acadêmicos, entre eles Salman Rushdie e Mario Vargas Llosa, foi enviado ao presidente da biblioteca, Anthony Marx, pedindo que a reforma fosse reconsiderada e o dinheiro aplicado nas bibliotecas regionais, alicerce comunitário dos bairros e de pequenas cidades americanos. Ao longo de 2012, jornalistas e críticos cobraram os planos de Norman Foster e os desenhos só foram mostrados ao público pouco antes do Natal. As imagens digitais não foram suficientes para acalmar os críticos.
O espetacular salão de leitura Rose, com seus afrescos, no 3º andar, repousa sobre estantes de livros arranjadas em um total de 1.300 colunas de aço. Nos desenhos do arquiteto, cujo projeto ainda não foi aprovado, essa área passa a ser aberta para abrigar livros de empréstimo e outras mídias, poltronas, estações de Wi-Fi e talvez até um café. O crítico de arquitetura do New York Times, Michael Kimmelman, acusa Norman Foster e o presidente da biblioteca de populismo ao tentarem tornar mais atraente para o público uma instituição já suficientemente querida, como se a ideia fosse competir por popularidade num programa de calouros.
Mas não fazer nada, concordam os detratores e defensores do projeto, não é opção. A pressão financeira e tecnológica já é uma realidade. Os planos prosseguem no ritmo habitual de projetos públicos em Nova York. No momento, fica o consolo de usufruir a leitura em um dos mais belos espaços internos dos Estados Unidos. Sem ouvir o apito de máquinas de cappuccino. Por enquanto.
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[Lúcia Guimarães, do Estado de S.Paulo]