Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Memórias de um tempo que bem podia não ter existido

O livro de Gonçalo Junior, A Morte do Grilo – A história da A&C e do gibi proibido pela ditadura militar em 1973 (Peixe Grande, 2012) me tenta a parodiar o título de outro trabalho, do colega Zuenir Ventura: 1968 – O ano que não terminou. Por exemplo: 1973 – O ano que bem podia não ter existido.

Gonçalo construiu seu livro justapondo painéis de modo a formar um mosaico, cujo epicentro nervoso é o inominável ano. O maldito dos malditos que vão de 1964 a 1985.

Sérgio de Souza, o Serjão, amigo silencioso, semeador de publicações, eis que a ditadura as ia matando e ele ia fazendo brotar outra, e mais outra, e algumas ele nos punha a cuidar, aos seus pupilos, Serjão é o abre-alas de A Morte do Grilo. Seu perfil, bem construído, nos prepara já para entender a têmpera do jornalista autodidata, que se formou lendo, vendo cinema, na “escola da vida”, sob as asas de uma mãe bela externa e internamente – e talvez sejamos aquilo que faz de nós a mãe, mais do que o pai.

Na narrativa de Gonçalo, vemos Sérgio, quarto de cinco irmãos, assistir à mãe expulsar de casa o pai adúltero, abster-se de sequer citar os nomes dos filhos que o pai terá com outra mulher, ir trabalhar adolescente ainda, deixando a escola no segundo ano ginasial, entrar no Banco do Brasil em terceiro lugar, passar em teste para trabalhar na Folha de S.Paulo em meio período e, ao cabo, já casado com Martha e iniciando a primeira renque de filhos, ter de acalmar a mãe ao deixar a vidinha garantida de bancário pelo jornalismo em tempo integral. (Ele se separaria de Martha quando o quarto filho estava com seis meses e casaria com a então secretária da redação de Realidade e futura jornalista Lana Nowikow, que topou seguir criando os meninos entregues pela mãe, e ainda teria mais três filhas com Sérgio.)

Gonçalo afirma o que nós, que o conhecemos de pertinho, sabemos bem: Serjão contribuiria para mudar os rumos da imprensa de São Paulo e do Brasil, e iniciou a geração mais jovem – a geração do Toninho Mendes (editor da Peixe Grande), do Angeli, do Laerte – nas mais espetaculares histórias em quadrinhos europeias e norte-americanas, com ajuda heroica de fraternais colegas como José Carlos Marão, Geraldo Galvão Ferraz – o Kiko – e Delfim Fujiwara, entre outros, driblando a pervertida censura até que o juiz ladrão aos 49 minutos do segundo tempo apitou um pênalti inexistente, ele mesmo bateu com nosso goleiro subjugado por policiais, e nessa partida nós tivemos como prêmio sair de cabeça erguida pela “vitória moral”.

De como o eixo se desloca do Rio para São Paulo

O panorama do jornalismo pátrio no meio do século 20 salta da narrativa de Gonçalo Junior tal e qual o conhecemos quando chegamos a São Paulo – nós que vínhamos do interior do Brasilzão mais rural que urbano, Zé Hamilton Ribeiro de Santa Rosa de Viterbo, Paulo Patarra do Vale do Paraíba, Woile Guimarães e eu de Marília, Marão de Ourinhos, José Carlos Delfiol de Conchas, Carlos Azevedo das barrancas do Paraná, o mineiro Murilo Felisberto de Lavras, e viriam os tresmalhados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Sul, Pará, Rio, Santa Catarina. Toda publicação importante tinha até ali sede no Rio: A Cigarra, Vida Doméstica, O Cruzeiro, Manchete, Última Hora, Tribuna da Imprensa, Senhor. Até revista com quadrinhos, assunto central do livro aqui resenhado, era editada no Rio, o Tico-Tico, onde o quadrinhista Luiz Sá apresentava os personagens Reco-Reco, Bolão e Azeitona – a revista longeva durou de 1905 a 1977.

A virada paulista começa com a chegada do ítalo-americano Victor Civita, que funda a Editora Abril em São Paulo. Ele vem com direitos comprados de Walt Disney e lança o Pato Donald, ponta de lança para plantar na já capital financeira do país nossa principal fábrica de revistas.

À brasileira, conseguimos não pagar direitos autorais

Gonçalo vai nos juntando, a turma que se conheceu na Folha, que sairia para revistas da Abril, Quatro Rodas onde já estava Paulo Patarra vindo da sucursal da Última Hora; a turma que faria Realidade e, depois da diáspora de 1968-1969, tocaria a A&C – Arte & Comunicação, fundada por Serjão (era editor de texto na Realidade), Narciso Kalili (repórter) e Eduardo Barreto (chefe de arte).

Neste passo, conviria a Gonçalo checar a ida de Sérgio de Souza da Folha para Quatro Rodas, com vistas a uma próxima edição de seu livro: Serjão chega ali não em 1961, mas a 1º de abril de 1964, levado por Zé Hamilton (fisicamente, de carro), segundo depoimentos que colhi do Zé e de Lana Nowikow, então secretária da redação de QR.

Em frente.

A narrativa dos embates com a censura, com auge no ano em que, não por acaso, dá-se a 11 de setembro (que dia!) o golpe do demoníaco Augusto Pinochet no Chile, nos faz lembrar o fascismo – “Viva a morte, abaixo a inteligência”, de Francisco Franco, lembra-se? A censura, narra Gonçalo, “jogaria a produção cultural brasileira nas trevas por 15 anos”, baixada por decreto pelo ministro da Justiça do governo do general Emílio Garrastazu Médici, o notório “galinha verde” Alfredo Buzaid – havia uma anedota sobre ele: Médici visita a Bolívia e, quando o general “presidente” de lá lhe apresenta seu ministro da Marinha, o general brasileiro se surpreende – “Mas vocês não têm mar!”, ao que o boliviano retruca – “Ora, e vocês não têm ministro da Justiça?”. Este era o ministro da “Justiça” na época dos confrontos nervosos da turma do Grilo com os agentes da censura.

A revista, em preto e branco inicialmente, sai em outubro de 1971, com “impacto imediato” sobre quem gosta de quadrinhos, escreve Gonçalo:

“… havia em seu conteúdo uma diferença em relação à mesmice dos bonecos Disney, da fórmula dos super-herois invencíveis e do desgaste dos mocinhos de aventura e de faroeste.”

Assim foi que os 50 mil exemplares, a 1 cruzeiro – “duas vezes o valor da revista Pato Donald” – esgotou em uma semana. Revista barata de se fazer. No começo eram Marão mais três pessoas: a tradutora Leda Cintra, mulher de Geraldo Galvão Ferraz, o Kiko, que também traduzia e escrevia textos com Dante Mattiussi e o chefe de arte, Ari Normanha. Conseguiram, à brasileira, fazer contatos com os gigantes dos quadrinhos do hemisfério norte e livrar-se do pagamento de direitos autorais – Guido Crepax (Valentina), Jules Feiffer (“fustigador dos hábitos da sociedade americana e ocidental”), Robert Crumb (Fritz, the Cat, Mr. Natural), Mell Lazarus (Miss Peach), Georges Pichard (Paulette) entre inúmeros outros. Segundo Gonçalo, Grilo “se tornou uma receita segura para a A&C”.

Tivemos de matar o Grilo, e nasceria o ex-

Mas a ditadura se assentava em gente pervertida, e burra. Os menores de 55 anos, que não viveram aqueles dias, podem ficar pasmos, mas o que Gonçalo Junior narra foi real:

“Na verdade, a chamada pornografia, numa referência ao erotismo e à liberdade sexual, também estaria a serviço de Moscou. Após o AI-5, a ditadura concluiu que a ‘onda pornográfica’ que tomava conta do país – apenas reflexo da contracultura e da revolução sexual, com mais liberdade para as mulheres – não passava de um plano orquestrado pelos vermelhos para destruir a família brasileira em nome do comunismo”.

Delfim Fujiwara, novo chefe de arte, que ficaria até a morte do Grilo, contou a Gonçalo:

“A censura nos importunava de todas as formas, por telefone e por escrito. Era um período em que quase ninguém podia ter opiniões, e nós as tínhamos.”

A polícia política, narra Gonçalo Junior, usou método “implacável” para nos amordaçar o Grilo: silenciou quando pedimos registro. E sem registro, que conduziria à submissão à censura prévia, você não podia circular, virava “clandestino, sob risco de apreensão”. Assim, no ano que bem podia não ter existido, nós da A&C tivemos de matar o Grilo, pois nossa posição era irredutível: censura prévia, jamais. Narra Gonçalo pela voz de Delfim Fujiwara:

“Até então havíamos sofrido ameaças de prisão e, várias vezes, disseram que havia apreensão da revista. Vivíamos sob esse terror. Por isso, fomos forçados a parar. Todos participaram da decisão: Narciso Kalili, Sérgio de Souza, Hamilton Almeida, eu, Myltainho etc.”

Matamos o Grilo, substituído pelo ex-, que a ditadura mataria, substituído pelo Mais Um etc., etc., etc. [ver aqui a coleção do ex-].

Uma mirada de fora para nos enriquecer

O livro de Gonçalo Junior se soma a outros lançados em tempos recentes, afins ao tema e à turma que se juntou na Folha, fez Realidade, fez a A&C que fez O Bondinho, a Revista de Fotografia, e o inesquecível Grilo. Entre esses livros, estão Realidade (re)vista: o papel do intelectual na concepção de um projeto revolucionário (Editora da Universidade Federal de Santa Catarina), de Vaniucha de Moraes; Realidade Re-vista (Realejo Livros), de José Carlos Marão e José Hamilton Ribeiro, com reportagens e seus bastidores, em sua maioria publicadas em Realidade; Leituras da Revista Realidade – 1966-1968 (Alameda Editorial), de Letícia Nunes de Moraes;Cicatriz de Reportagem – 13 histórias que fizeram um repórter, de Carlos Azevedo, com suas reportagens e bastidores; e o meu Realidade – História da revista que virou senda, no início de março deste 2013, com 40 anos redondos sobre o fatídico ano da morte do Grilo.

Com A Morte do Grilo – A história da Editora A&C e do gibi proibido pela ditadura militar em 1973 , Gonçalo Junior nos traz um olhar de fora e distanciado no tempo daquele momento, com detalhes e ângulos para os quais aqueles que dele participavam estavam desatentos. Enriquece o acervo do pesquisador, do historiador, do jornalista, do escritor, de quantos queiram “munição” para reconstituir as trevas e a ação dos que arriscavam a pele para, em vez de se limitar a amaldiçoá-las, acender uma vela, que eles apagavam, e acendíamos outra, e outra, e outra…

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Mylton Severiano é jornalista