No poema Balada do Homem de Fora, Paulo Mendes Campos esboçou um autorretrato severo: “Nas almas dos outros há/ searas de poesia;/ em mim poeiras de prosa,/ humilhação, vilania”. Essa lírica da prosa, sem nunca ter sido egocêntrica, sempre foi confessional. A distinção, sutil e decisiva, ajuda a entender tanto a densidade da crônica quanto a relevância da tradução na obra de PMC.
Esclareço a distinção recordando um poema-chave, Fragmentos em Prosa, cujo título dialoga ironicamente com o perfil delineado nos versos anteriores. Eis a estrofe inicial: “Nasci a 28 de fevereiro de 1922, em Belo Horizonte, /No ano de Ulisses e de The Waste Land, /Oito meses depois da morte de Marcel Proust, /Um século depois de Shelley afogar-se no Golfo de Spezzia. /Nada tenho com eles, fabulosos, /Mas foi através da literatura que recebi a vida /E foi em mim a poesia uma divindade necessária”.
Literalmente; aliás, como se depreende da crônica CDA: Velhas novidades, reunida emMurais de Vinicius e Outros Perfis. Nela, PMC ampliou a ideia da poesia como referência indispensável do cotidiano: “Minha geração (…) falava fluentemente um idioma oarístico, colhido nos versos de Drummond. Era a maneira mais econômica, secreta e eloquente de nos entendermos”.
Por isso, o vínculo incontornável com a tradição literária permitiu ao cético poeta e cronista driblar a posologia cômoda do niilismo. Daí, a consciência dos próprios limites não reduziu o mundo à imagem egocêntrica de uma precariedade especular. Os versos de Neste Sonetoelaboram a distância entre os dois polos: “Neste soneto, meu amor, eu digo, /Um pouco à moda de Tomás Gonzaga. /Que muita coisa bela o verso indaga /Mas poucos belos versos eu consigo”. O poeta não lamenta o hiato entre pensamento e forma; ele constata a possibilidade de reuni-los num verso que, embora ainda não tenha sido por ele escrito, encontra-se no horizonte da tradição. O dístico final, portanto, sugere a centralidade da tradução: “E louvo aqui aqueles mestres /Das emoções do céu e das terrestres”.
Palavras idênticas
Guilhermino Cesar, ao prefaciar uma antologia de poemas de PMC, acertou em cheio: “o percurso do autor ficaria incompleto se fossem omitidas as traduções que tem feito de algumas peças da melhor poesia universal”. Ele foi um dos nossos mais prolíficos e bem-sucedidos tradutores, embora tal faceta seja negligenciada com frequência. PMC dedicou-se com afinco ao estudo de poesia, e o ato de traduzir deve ser compreendido como exercício de artesão. Eis uma lista selecionada dos poetas que traduziu (não menciono romancistas e contistas, porque então este artigo seria composto exclusivamente por uma longa relação de nomes!): William Blake, Emily Dickinson, Guillaume Apollinaire, Federico Garcia Lorca, Paul Claudel, T.S. Eliot, Rosalía de Castro, Pablo Neruda, Jorge Luis Borges, W.H. Auden.
A enumeração poderia seguir, mas importa assinalar o norte do poeta. Atitude anunciada numa notável antologia, Forma e Expressão do Soneto, organizada em 1952. No ano anterior, PMC havia lançado seu primeiro livro de poemas, A Palavra Escrita. No prefácio da antologia, após assinalar a necessidade de respeitar as convenções multisseculares do soneto, o futuro cronista desenhou seu roteiro: “a convenção da forma excita o prazer de inventar. A liberdade vale mais quando consente a disciplina. Desprezar uma convenção poética é um gesto humano, não é um gesto poético”.
Trata-se da posição definidora da literatura de PMC: em 1952, longe da lírica de terno e gravata da geração de 1945, mas igualmente distante da dispersão programática da fase heroica do modernismo. No fundo, ele foi o cultor de território autônomo, cuja idiossincrasia talvez tenha colaborado para adiar o reconhecimento pleno de sua força como criador.
A reedição de sua obra muito se beneficiou da sábia organização de Flávio Pinheiro. Em lugar de simplesmente republicar livros fora de catálogo, Pinheiro criou seleções temáticas, explicitando o traço dominante do estilo de PMC: “Era claríssimo no que escrevia mas seu repertório vocabular e sua escolha de temas carregavam densidade incomum”. O olhar denso sobre o mundo e os homens desdobrou-se na multiplicidade da escrita: “Escreveu crônicas-ensaios e crônicas-poemas, mas também notáveis crônicas de puro humor”. Síntese perfeita da prosa de PMC, fotografando seus eixos definidores.
Crônica-ensaio é a noção mais exata para pensar os textos reunidos em Brasil brasileiro e O gol é necessário; assim como crônica-poema é uma bela definição para os textos que compõem Murais de Vinícius e outros perfis.
Os textos de Brasil brasileiro merecem uma releitura urgente e cuidadosa. Em Brasileiro, Homem do Amanhã, PMC ofereceu uma análise penetrante das “colunas da brasilidade, as duas constantes (…): 1) a capacidade de dar um jeito; 2) a capacidade de adiar”. Antes dos iluminadores estudos de Roberto DaMatta e Lívia Barbosa, o cronista intuiu uma completa sociologia do jeitinho brasileiro! A ironia corta o possível ufanismo do título pela metade: não se reafirma a fantasia do Brasil como país do futuro. Pelo contrário, o brasileiro é o homem do amanhã apenas porque a procrastinação é a lei de sua atividade… O movimento contagia a crônica, como se deduz de seu fecho: “O resto eu adio para a semana que vem”.
Em O Gol É Necessário, PMC revelou sua fascinação por Garrincha, com base numa evidência irrefutável: os dois poderiam ser considerados “alcoólatras de futebol” – expressão usada na crônica Os Adoradores da Bola. Nos textos dedicados a Garrincha, ele ponderou o ânimo dessa afinidade, que era, por assim dizer, tanto esportivo como literário: “Garrincha é como Rimbaud: gênio em estado nascente”. Por isso, afirmou que, “logo depois da Copa de 58, pensei em escrever um livro sobre ele”. A seu modo, no documentário Garrincha, Alegria do Povo (1963), Joaquim Pedro de Andrade filmou o livro nunca escrito.
Outro aspecto deve ser destacado. Na obra de PMC, o gênero da crônica implica um exercício agônico; aliás, figurado no poema Três Coisas: “Não consigo entender /O tempo /A morte /Teu olhar”. A crônica, assim, remonta à mitologia, pois, como um Cronos que seguisse devorando os filhos, a transitoriedade é o alfa e o ômega de todas as coisas. A única promessa de eternidade, ainda assim fugaz, talvez seja o amor: “A morte será o escuro? / Em teu olhar me procuro”.
Contudo, no universo de PMC, o avesso é sempre uma hipótese. Numa de suas crônicas mais conhecidas, O Amor Acaba, o leitor descobre que mesmo o perene pode ser volátil: “O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar”. No olhar de PMC, porém, como já se advinha, o avesso engendra o seu contrário; daí, no parágrafo final, outra surpresa se destaca: “em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba”. A crônica principia e conclui com idênticas palavras – O Amor Acaba– mas em cada ponta do texto o significado se altera radicalmente. O transitório contamina a semântica da crônica.
Fluência drummondiana
Esse jogo de opostos conduz, indiretamente, ao “puro humor”. E é bem isso: na tradição anglo-saxã de humour, incorporada à literatura brasileira pelo defunto autor machadiano. Em 1956, PMC organizou uma nova antologia, e o título adotado vale como um manifesto em tom menor: “Páginas de humor e humorismo”.
A simples distinção, aparentemente apenas preciosa, é precisa no esclarecimento da visão do mundo de PMC. A busca da comicidade supõe uma grande confiança em si mesmo, permitindo descobrir no outro motivo de riso – ou, bem brasileiramente, de escárnio. É muito distinta a acepção adquirida pelo humor na prosa do autor dos versos: “Há gente que não duvida /quando quer ir ao cinema; /duvido de minha dúvida /no meu bar de Ipanema”.
Aqui, o humor equivale à derrisão do sujeito. PMC foi sobretudo cético de si mesmo, não necessariamente do mundo e muito menos da literatura. Na caracterização justa de Sérgio Augusto: “nutria pela notoriedade o mesmo horror que Machado tinha à controvérsia, evitou sempre os refletores e o picadeiro literário”. A simples hipótese da celebridade pareceria um paradoxo risível para o autor dos versos: “No gesto dos outros vai /a elegância do traço; /no gesto torto que faço /surge a ponta do palhaço”. É como se oPoema de Sete Faces, de Carlos Drummond de Andrade, devesse ter sido escrito para ele: “Quando nasci, um anjo torto /desses que vivem na sombra /disse: Vai, ! ser gauche na vida”.
Falante fluente do idioma drummondiano – Paulo foi.
Mas não na literatura. Como seus versos revelam, ele foi um gauche que aprendeu a apreciar a poesia (dos outros), e também o (próprio) processo: “Igual à fonte escassa no deserto /Minha emoção é muita, a forma, pouca. /Se o verso errado sempre vem-me à boca, /Só no meu peito vive o verso certo”.
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João Cezar de Castro Rocha é professor de Literatura Comparada da UERJ