Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O cronista da solidão

Paulo Mendes Campos era o mais velho dos legendários “vintanistas” mineiros. Três meses mais velho que Otto Lara Resende, quase dois anos mais que Fernando Sabino e Hélio Pellegrino; todos nascidos no início da década de 20 do século passado, na aurora do Modernismo; todos na faixa dos 20 quando Mario de Andrade, autor do epíteto, com eles fez amizade em Belo Horizonte. Era o poeta do grupo, um inseparável quarteto apelidado por Otto de “os quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”, que nem a diáspora para o Rio de Janeiro, quando a Segunda Guerra Mundial chegou ao fim, conseguiu dispersar. Ao contrário, na então capital do país a amizade entre os quatro ficou ainda mais sólida, com o acréscimo ao grupo de mais um cavaleiro, o capixaba Rubem Braga, de quem Fernando e Paulo se tornariam sócios na pioneira Editora do Autor, em 1960.

Hélio cometia seus versos, mas de vate bissexto e amador nunca passou. Fernando e Otto, concorrentes diretos de Paulo no jornalismo, estabeleceram parâmetros próprios no gênero em que melhor se distinguiram, a crônica. Fernando com a desenvoltura de um jogral, Otto com a astúcia de uma raposa, Paulo com um misto de lirismo e erudição, tão equidistante do imbatível mestre do gênero, Rubem Braga, quanto do ensaísmo de língua inglesa, que conhecia como poucos no Brasil.

Dos três cronistas, foi o mais injustiçado pela posteridade. Não porque tenha deixado obra de qualidade inferior, mais rápida e facilmente perecível ou cerebral além da conta. Nada do que é essencial à boa crônica lhe era alheio. “Tinha todas as virtudes dos melhores comentaristas do cotidiano”, ressaltou Flávio Pinheiro, dedicado leitor (e organizador) da prosa de Paulo, para em seguida enumerá-las: “O olhar perspicaz para descobrir o sabor oculto nas miudezas e circunstâncias da vida, humor e ironia refinados e uma destreza para lidar com as palavras decantada em invenção poética”. Mesmo em vida usufruiu bem menos fama que o (comparativamente mercurial) Fernando e o badalado Otto (causeur sem igual, centro das atenções em qualquer salão, fixação e até personagem de Nelson Rodrigues), mais por culpa de seu temperamento que da têmpera de seus escritos, de resto tão prodigamente distribuídos na imprensa quanto os de seus companheiros.

Apesar de boêmio juramentado, habitué dos bares de Ipanema e Leblon, fazia mais o tipo retraído, e, porque nutria pela notoriedade o mesmo horror que Machado tinha à controvérsia, evitou sempre os refletores e o picadeiro literário. Via a crônica como um ganha-pão, não mais que isso. Não menosprezava o gênero, como outros praticantes, a começar por Olavo Bilac, que se autodepreciava como “um profanador da arte e ganhador das letras”, mas, se pudesse, viveria só de poesia.

Colunista dos morros

Por aquela excêntrica classificação de pessoas inventada por Jaime Ovalle, popularizada por Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes, com o nome de gnomonia, Paulo era um dantas autêntico, com elementos quernianos. Ou seja, um sujeito pouco ou nada ligado ao sucesso material, que tentava viver em estado de pureza, buscando um equilíbrio perfeito entre as forças da inteligência e da sensibilidade, mas ao mesmo tempo quernianamente impulsivo, desabrido e impetuoso – sobretudo quando não estava mais sóbrio.

Bebia bem, no mau e bom sentido. “Para disfarçar a humilhação terrestre”, explicava. Quem só o conhecia de leitura poderia imaginá-lo não só abstêmio mas também um evangelista da temperança. “Álcool é um veneno mortal, que consola e degrada o homem”, pontificou numa crônica, discordando, en passant, de G. K. Chesterton, para quem o homem, sim, degrada o álcool, e de Humphrey Bogart, para quem a humanidade está sempre três doses abaixo do normal. Outras vezes exorcizou nesse tom o seu conflituoso fascínio pela bebida. Começou a entornar ainda na puberdade e perdeu a conta de quantos botecos visitou nas cidades brasileiras e estrangeiras, inclusive na Rússia e na China, por onde andou. Nunca, porém, entendeu como alguém podia escrever em bares ou beber para escrever.

Cético precoce, mal passara dos 20 quando, em entrevista a uma fugaz revista cultural belorizontina editada por Wilson Figueiredo e modernisticamente chamada Edifício, definiu sua turma como “uma geração perdida numa selva escura”, fadada ao fracasso no campo estético-augúrio precipitado e, felizmente, furado. A vinda para o Rio e o passar do tempo não o tornaram mais otimista e fagueiro. “Robinson de uma ilha crepuscular esperando o segundo naufrágio, todos os dias”, em tal estado de abandono que se sentia neste mundo, segundo ele, “afortunadamente nada divertido”. Via nossa cultura como “uma empreitada de demolições”, uma reutilização sem fim de material arruinado, daí sua impressão de que não havíamos dado certo. Ele deu.

Quando, na adolescência, resolveu fazer-se escritor, comprou três cadernos. Num deles copiou poemas sobre a morte; noutro anotou todos os trechos que lhe pareciam pertinentes ao problema do tempo; no terceiro, verso e prosa que se referissem à solidão. Já estava encaminhado. Contrabalançando sua índole plúmbea, um senso de humor espontâneo e matreiro. “Quem não tem senso de humor não pode ser um poeta; quem não tem sentido lírico não pode ser humorista”, disse ou escreveu, e o humorista Jaguar anotou para usar na abertura de uma entrevista de Paulo ao Pasquim, o semanário humorístico do qual foi esporádico colaborador. Outra prova de sua intimidade com a matéria é uma antologia do humor brasileiro que organizou na década de 1960. Mais ou menos na mesma época, inventou um colunista social dos morros cariocas, Teodoro Enguiço, uma espécie de Ibrahim Sued da favela empenhado em promover as proezas de Rosinha Boca de Fogo, Marlene Fofoca, Santinha Turcão e outras VIPs da classe C.

Almas de truz

Carnavalesco só de berço, Paulo nasceu no meio da Terça-feira Gorda de 1922, em Belo Horizonte. Dividiu com nove irmãos as atenções e os mimos paternos, a princípio em Saúde (hoje Dom Silvério), na Zona da Mata, onde o pai, médico, fora trabalhar. Teve uma infância ferroviária, os pés descalços no calor dos trilhos que lhe prometiam convivência, exaltação, aromas, cidades, canções, “e alguma solidão admirável”. Aos 6 anos, voltou à cidade natal e disputou suas primeiras peladas bucólicas à beira do rio. Aos 11, fugiu de casa, com dois amigos e a intenção de viver entre os índios em Goiás. Disposto a trabalhar, foi parar atrás do balcão da loja de um tio, o mesmo para o qual voltaria a dar duro após concluir o primeiro grau (antigo ginásio) num internato de São João del-Rei. Já era outro o negócio do tio (um escritório de construção civil), diariamente visitado por Otto, Fernando e Hélio, que sempre arrumavam um jeito de tirar Paulo do batente para conversar sobre poesia e literatura no Parque Municipal.

À noite, conforme está contado em Encontro Marcado, o romance à clef de Sabino, e detalhado em O Desatino da Rapaziada, o indispensável inventário biográfico que Humberto Werneck fez da intelectualidade mineira entre os anos 1920 e 1970, os quatro cavaleiros do íntimo apocalipse iam “puxar angústia” na praça da Liberdade. “Descer ao fundo escuro do poço, onde se acham as máscaras abomináveis da solidão, do amor e da morte”, na versão de Paulo. Belo Horizonte era uma província, com apenas dois ou três quarteirões na rua Bahia com aparência de cidade grande, por onde o tédio bovarista desfilava em busca de consolo nos enclaves da jovem boemia local.

A tal ponto indisciplinado que seus pais cogitaram encaminhá-lo ao clero, Paulo custou a decidir-se sobre a profissão que mais lhe apetecia. Quase foi dentista, quase foi piloto, advogado e veterinário, flertou com a sociologia e a estatística, mas só tirou um diploma: de datilografia. Era o que lhe bastava para, com sua imensa cultura e proporcional sensibilidade, aprumar-se na vida, dirigindo biblioteca, trabalhando em jornal, escrevendo anúncios, roteiros e narrações de documentários, traduzindo clássicos da literatura mundial, além das reportagens, crônicas e poesias que o celebrizaram. Graças ao mentor de toda a desatinada rapaziada mineira, João Etienne Filho, dirigiu o Suplemento Literário da Folha de Minas, espalhando seu talento por duas outras folhas do Estado.

Na primeira oportunidade, Fernando, já casado, tomou coragem de se desligar da província e partir para a Paris mais próxima e acessível, o Rio de Janeiro. Paulo foi o segundo a se mandar. Em agosto de 1945, na flor dos 23 anos e ainda solteiro, entre aceitar o lugar de assessor da diretoria de um banco e ir para o Rio conhecer pessoalmente o poeta chileno Pablo Neruda, de visita à cidade, cravou firme na coluna da direita e tomou o primeiro noturno rumo à estação da Leopoldina, onde desembarcou “sem profissão, sem emprego, sem ciência”. Penou, passou fome, puxou novas angústias, dissipou as ondas de tristeza com “chope, samba, anedota, beijo na esquina e cartas”, em geral endereçadas ao Otto, mas afinal conheceu Neruda.

Hospedado e alimentado provisoriamente pelo casal Sabino e por Vinicius e Tati de Moraes, arrumou dois fugazes empregos na área editorial, providenciados por Carlos Drummond de Andrade, que ainda lhe emprestou uma máquina de escrever. Sempre ajudado por poetas, teve o dedo de Augusto Frederico Schmidt a vaga que em seguida arrumou no jornal Correio da Manhã, acumulando com o cargo de fiscal de obras do Ipase (Instituto de Pensões de Assistência aos Servidores do Estado), que Cyro dos Anjos lhe conseguiu.

Superada a pindaíba, pôde enfim morar sozinho. Primeiro, num hotel furreca nos arredores da Lapa, depois numa pensão de nome cafona (Palacete Mon Rêve), no Leme, ascendendo até Copacabana, Ipanema e Leblon depois que sua carreira de jornalista se consolidou e outros afazeres em publicidade, cinema e no serviço público foram aparecendo. Deixou sua marca em alguns dos veículos mais importantes do seu tempo, do Correio da Manhã ao Jornal do Brasil, passando pelo Diário Carioca e culminando com a revista Manchete, em cujas páginas mais tempo brilhou como cronista, ao lado de Fernando, Otto e o velho Braga. Conviveu com as melhores cabeças do País e algumas das melhores almas da segunda metade do século. Com o Rio e seus bares e suas praias manteve um indissolúvel caso de amor.

“Lado da sombra”

A maioria das crônicas publicadas neste volume, escritas entre as décadas de 40 e 80, foi publicada em Manchete. A mais antiga, Soneto a Quatro Mãos, datada de 1945, saiu no Correio da Manhã; a mais recente, Casa do Leblon, que brotou da máquina de escrever do autor com o título de Vinicius Não Tem Fim, foi publicada no Caderno B do Jornal do Brasil, em 30 de abril de 1989. A Carta a Pero Vaz de Caminha ganhou primeiro as páginas da revista Quatro Rodas, em 1976.

Ao longo de 33 anos Paulo publicou 15 livros, boa parte deles compilações de crônicas, com títulos tão sedutores como O Cego de IpanemaHora do RecreioHomenzinho na VentaniaO Anjo Bêbado Cisne de Feltro. Debutou com uma coletânea de poemas, A Palavra Escrita, editada em 1951, e encerrou a carreira em 1984 com Trinca de Copas, recheada de traduções de poemas de T.S. Eliot, James Joyce, Paul Verlaine, García Lorca e outras de suas admirações. Paulinho (não era só Vinicius que assim, carinhosamente no diminutivo, o chamava) morreu em 10 de junho de 1991. Muitos anos antes havia pedido, numa crônica, que o “engavetassem com a máxima simplicidade e do lado da sombra”. Ficamos lhe devendo uma rosa sobre o túmulo, como a que ele depositou no de Baudelaire. E pelos mesmos motivos: “A fulgurância do raciocínio e a elegância corrosiva de seu sentimento trágico”.

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Sérgio Augusto é jornalista e ensaísta