Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Saindo da sombra

(…) aprendam a olhar atrás do espelho/ onde a história jamais penetra/ a profunda história do não registrado/ aprendam a procurar debaixo da pedra/ a estória do sangue evaporado/ a estória do anônimo desastre/ aprendam a perguntar/ por quem construiu a cidade/ por quem cunhou o dinheiro/ por quem mastigou a pólvora do canhão/ para que as sílabas das leis fossem cuspidas/ sobre as cabeças desses condenados ao silêncio (Afonso Henriques Neto, “Dos olhos do não”)

Motoristas de jornal sempre foram parte fundamental da produção de reportagens. Apesar disso, parecem condenados ao silêncio: não têm sua importância reconhecida pelo mundo acadêmico, que não os considera objeto de pesquisa, nem, em geral, por jornalistas que narram suas trajetórias em livros, nem, muito menos, pelo público, que ignora – mas provavelmente se interessaria muito em saber – como são feitas as notícias. [Breve exceção é a menção que José Maria Mayrink (2002, p. 191) faz em seu Vida de repórtera Sebastião Ferreira da Silva, o Ferreirinha, da sucursal do JB em São Paulo. Entretanto, sua afirmação de que são raros os motoristas que “entram no espírito da cobertura e se tornam verdadeiros repórteres auxiliares” contraria frontalmente os relatos neste livro.]

Geralmente provenientes das camadas mais pobres da população, conhecedores de todos os cantos da cidade e muito hábeis ao volante, esses profissionais transmitem, antes de mais nada, uma sensação de segurança para a equipe de reportagem, que confia neles para chegar mais rápido a seu destino e também sabe que será protegida em situações de risco. Mais que isso, porém, os motoristas costumam ir além de suas obrigações elementares e “vestem a camisa” do jornal, revelando-se entusiasmados colaboradores, seja no contato com fontes de difícil acesso para estranhos, seja porque, em consequência do próprio convívio com os repórteres, acabam desenvolvendo uma percepção aguda do que pode virar notícia e, frequentemente, sugerem ou ajudam a dar ideias para novas matérias.

Este livro procura expor a importância do trabalho coletivo no jornalismo e tornar conhecidos personagens que costumam ficar à margem, relegados à sombra. Conta suas histórias, aponta situações em que foram decisivos para o sucesso de uma reportagem, mostra como vivem. Além disso, indaga que consequências poderão ter, para o exercício do jornalismo, o atual processo de terceirização do setor de transportes das empresas, como forma de cortar custos, e a progressiva adoção da tecnologia digital na produção da notícia.

No primeiro caso, como se verá, no jornal O Globo essa mudança gerou protestos de tal ordem que acabou interrompida a meio caminho: repórteres e fotógrafos se recusavam a sair com motoristas que não eram “do ramo”, conheciam mal a cidade e não tinham sensibilidade para as necessidades e as urgências do trabalho jornalístico. Mas, em outros casos, a terceirização é apenas um artifício para redução de custos: o profissional deixa de ter carteira assinada para retornar à empresa como autônomo, mas não rompe a relação orgânica com o restante da equipe. Quanto ao uso da tecnologia digital, uma das consequências mais evidentes é a redução cada vez maior de saídas, de modo que a frase tradicionalmente definidora da profissão – “lugar de repórter é na rua” – tende a ser coisa do passado.

“Espírito” do jornalismo

O primeiro passo para a realização da pesquisa foi a busca de contato com jornalistas que pudessem não só relatar sua experiência com os motoristas como indicar aqueles que, entre tantos, poderiam contar boas histórias. A partir daí foi possível definir o grupo de motoristas a ser entrevistado, e que constituiu o universo mais amplo possível, abrangendo funcionários do antigo Jornal do Brasil, do Globo, do Extra, do Dia e da sucursal da Folha de S.Paulo: uma parte de aposentados, outra de profissionais da ativa, alguns deles com carteira assinada, outros terceirizados.

A perspectiva inicial era restringir as entrevistas ao pessoal de jornal impresso, mas isso foi revisto com a descoberta da única mulher nesse universo masculino, trabalhando para o portal G1, e de dois motoristas de rádio – um da CBN, outro da Rádio Globo –, que, pela relevância de suas histórias, não poderiam deixar de fazer parte deste livro. Além disso, foi incorporado, ao final do segundo capítulo, o depoimento de um jornalista de Brasília, pela importância do relato sobre o papel de um taxista para a veiculação de flashes de reportagem no dia da internação do presidente eleito Tancredo Neves.

A pesquisa não se estendeu para o telejornalismo, mas indica a situação especial de quem conduz os carros de reportagem nessa área: normalmente, são de auxiliares de câmera que têm também a função de dirigir. [Essa dupla função ganhou publicidade durante as manifestações de protesto e pesar pela morte do cinegrafista Gelson Domingos, da Band, durante uma operação policial numa favela na Zona Oeste do Rio, em 6 de novembro de 2011. O episódio provocou uma série de críticas sobre as condições de segurança para o trabalho de reportagem em confrontos armados, com ênfase sobre a precariedade dos coletes à prova de balas.]

Em geral expansivos, alegres e muito falantes, os motoristas divertiram-se durante as entrevistas, enaltecendo os repórteres que eram “parceiros”, criticando os eternamente mal-humorados, que derrubavam pauta. E contaram, empolgados, a própria participação no desenrolar das reportagens. A forma como se referiam a elas não deixava dúvidas sobre o sentido coletivo do trabalho: “a nossa matéria”. Reconheciam-se nela quando saía publicada no dia seguinte e, da mesma forma, sofriam se levavam furo. Não se tratava apenas de uma identificação com o repórter ou o fotógrafo, que em muitos casos evoluiu para uma relação de amizade, ou do simples entusiasmo que costuma contagiar quem trabalha, literalmente, correndo atrás da informação: a prática diária os levava a desenvolver, intuitivamente, a percepção do que poderia ser notícia, portanto a sugerir pautas, tomar a iniciativa de tirar fotos, passar flashes para a redação durante uma cobertura ou ajudar na apuração. Daí a definição de um dos entrevistados: “o motorista é o segundo olho do repórter”. Às vezes, era até o primeiro olho, como nos casos em que alertavam os colegas de equipe para fatos que lhes haviam passado despercebidos e que, eventualmente, seriam um furo de reportagem.

Foram longas conversas, de forma a deixá-los à vontade para falar sobre suas trajetórias e lembrar-se de casos relevantes em suas carreiras. No caso dos aposentados, as entrevistas foram realizadas em suas próprias casas, o que favoreceu o contato informal e permitiu a observação de detalhes de ambiente. No caso dos profissionais da ativa, considerando o ritmo diário de trabalho, esses encontros tiveram de ser marcados nas próprias empresas, em geral ao fim do expediente. Entre os jornalistas, alguns também deram longos depoimentos, outros enviaram suas contribuições por e-mail. Todas as entrevistas, realizadas entre março e agosto de 2011, foram gravadas em áudio e a maioria, também em vídeo.

Minha experiência como repórter, apesar de relativamente breve e já distante no tempo – foram cerca de nove anos, ao longo da década de 1980, principalmente no Globo e no JB –, ajudou na familiaridade com o tema, embora exigisse a contrapartida de um cuidado especial na condução das entrevistas, para evitar prejulgamentos, mas, ao mesmo tempo, não escamotear o papel de entrevistadora que, além de pesquisar sistematicamente a práxis jornalística como professora na área, viveu o cotidiano das redações e mantém contato com alguns profissionais, inclusive alunos e ex-alunos que ingressam no mercado de trabalho.

Este livro, portanto, incorpora o conhecimento teórico sobre o jornalismo, as rotinas de produção da notícia e as transformações pelas quais a profissão vem passando com a utilização da tecnologia digital, e apresenta depoimentos de jornalistas e motoristas sobre o seu trabalho. Este segundo aspecto, que é a base da pesquisa, associa as orientações elementares da história oral – um conjunto sistemático, diversificado e articulado de depoimentos gravados em torno de um tema – e das histórias de vida, que refletem a existência de seres humanos concretos na sua prática de trabalho diária [cf. Aspásia Camargo, na apresentação do Manual de história oral, de Verena Alberti (p. 12), e Marilena Chaui, na apresentação de Memória e sociedade – lembranças de velhos, de Ecléa Bosi, p. xxv)].

Porém, diferentemente do que faz Ecléa Bosi em seu Lembranças de velhos, que não se preocupa com a veracidade do que dizem os narradores porque o que lhe interessa é o que foi lembrado e escolhido para perpetuar-se em sua história de vida [Ecléa Bosi, cit., p. 1] , aqui foi necessário verificar a fidedignidade do relato, confrontando os depoimentos entre si e confirmando determinadas informações com as fontes documentais – as referências a reportagens para as quais os motoristas haviam colaborado decisivamente, a maioria delas reproduzida neste volume. Ao mesmo tempo, procurei não cortar os eventuais excessos das falas dos motoristas ao relatarem o seu protagonismo, buscando apenas destacar esse procedimento no momento da redação dos respectivos depoimentos, porque entendo que tais excessos corroboram, de maneira exacerbada – mas, por isso mesmo, extremamente significativa –, a forma pela qual esses profissionais incorporam o “espírito” do jornalismo e entendem o seu papel na produção da notícia.

Boas histórias

O livro se divide em duas partes. A primeira traz dois capítulos: um sobre as transformações da prática jornalística diante das novas tecnologias, o que aponta uma série de incógnitas para o futuro dessa atividade. O outro, sobre as relações entre jornalistas e motoristas, compondo um quadro amplo de colaboração – e eventuais conflitos –, solidariedade e mesmo amizade, refletido nas esticadas depois do fechamento, em confraternizações em festas, churrascos e botequins. A segunda parte reúne uma seleção de entrevistas com motoristas, nas quais eles expõem a sua maneira de encarar o trabalho, as suas contribuições para a realização das reportagens e também, frequentemente, as suas frustrações pelo não reconhecimento de seu papel como membros de uma equipe.

Os depoimentos reunidos aqui são reveladores de aspectos ignorados ou subestimados do processo de produção de notícias. Podem ajudar a ampliar as perspectivas para o campo dos estudos de jornalismo voltado para as ainda raras pesquisas empíricas. O público em geral terá a oportunidade de se aproximar de um universo que desconhece, e de saborear boas histórias de bastidor. E os motoristas, em geral muito críticos de seu papel, podem começar a ver expandido seu reconhecimento, atualmente restrito a algumas manifestações dentro das redações. Afinal, se o repórter fez a excelente matéria, se o fotógrafo fez a foto notável, se ambos ganharam prêmio, quem os conduziu?

******

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)