Antes de doar sua coleção brasiliana para a Universidade de São Paulo (USP), o empresário e leitor de Machado de Assis e Marcel Proust José Mindlin (1914-2010) definiu tudo: qual seria o terreno, quem seriam os arquitetos, quanto tempo deveria durar a construção do prédio e como os livros precisavam ser conservados. Até a curadora atual, Cristina Antunes, trabalhou 30 anos com o bibliófilo. Mesmo assim, seu neto, o arquiteto Rodrigo Mindlin Loeb, que assina o projeto com Eduardo de Almeida, diz que edificar a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, com inauguração neste sábado, foi uma tarefa hercúlea.
Havia muito tempo não se via um projeto dessa magnitude no campus. A concretização da biblioteca, que possui 17 mil títulos – e tem capacidade para chegar a 30 mil – e 40 mil volumes, exigiu uma injeção de recursos de R$ 130 milhões. A coleção é avaliada em R$ 100 milhões. O dinheiro veio do orçamento da própria USP, do BNDES e de empresas públicas e privadas com renúncia fiscal apoiada pelo Ministério da Cultura, via Lei Rouanet. O esquema de segurança é algo inédito: só a biblioteca tem mais câmeras do que a universidade inteira.
A área construída, de 21.950 metros quadrados, contempla dois edifícios e, entre eles, uma grande alameda que liga duas ruas. De um lado fica a biblioteca, de outro, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). O prédio funciona como uma praça e é aberto a todos que queiram visitá-lo ou passar por ele. Há ainda uma cafeteria, um auditório que comporta 330 pessoas sentadas e uma livraria da Edusp. Uma das poucas exigências da USP foi para que a construção fosse horizontal e, assim, se integrasse ao padrão dominante da Cidade Universitária.
Livros desenhavam o espaço
O projeto faz referência a várias bibliotecas, entre elas a da Universidade de Yale, a do Louvre e a de Delft. O prédio, feito com placas de concreto moldadas, expõe as tubulações no interior e no exterior é protegido da radiação solar por chapas de alumínio. O melhor da tecnologia está lá. Da eficiência energética à conservação dos livros, orientada pela Biblioteca do Congresso de Washington.
Na parte aberta, o piso é de basalto. Acima, nos gabinetes de trabalho e na área destinada aos pesquisadores, foi colocado um carpete sintético antiestático. Uma doação de R$ 7 milhões do BNDES permitiu a compra dos móveis, quase todos de emblemáticos designers brasileiros: Carlos Motta, Sergio Rodrigues, Oswaldo Bratke. Os bancos baixos e moderninhos, de madeira e borracha, são de Flavia Pagotti, formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP).
Vidro e transparências dominam a construção, que tem um vazio central e grandes janelas, em todos os andares, que abrem o prédio para o interior e o exterior. Parte do espaço é circulante, mas o acesso à área dos livros é rigidamente controlado. Aqui e ali há referências à biblioteca original, com estantes vermelhas e mezanino, que existia na casa de Mindlin, no Brooklin, na zona sul de São Paulo, onde os livros desenhavam o espaço, já que eram paixão tanto dele quanto de sua mulher, Guita (1916-2006), renomada restauradora, fundadora da Associação Brasileira de Encadernação e Restauro.
A primeira conversa
Doar a brasiliana para a USP era um projeto antigo de José Mindlin, que em 1950 fundou com amigos a fábrica de pistões Metal Leve e a vendeu 46 anos depois por US$ 65 milhões. Parte importante de sua biblioteca havia sido herdada do colecionador Rubens Borba de Moraes (1899-1986), que ao morrer a cedeu com o compromisso de que, no futuro, fosse doada para a USP. Já nos anos 80 os dois amigos chegaram a criar um instituto com esse objetivo. Mas a concretização do projeto levou tempo e enfrentou inúmeros entraves jurídicos e burocráticos.
A ideia inicial de Mindlin, que lia cerca de 1.500 páginas por mês e foi secretário estadual da Cultura de São Paulo, era doar a brasiliana para uma fundação. A USP cederia o terreno, em regime de comodato, por 99 anos, e a fundação seria responsável por construir, gerir e manter a biblioteca. No centésimo ano tudo seria incorporado ao patrimônio da USP. Durante os trâmites, porém, Mindlin percebeu que ao doar sua coleção para uma fundação privada ela estaria sujeita a tributos. O projeto ficou estagnado por três anos. Só depois os articuladores concluíram que a solução seria fazer uma doação direta para a USP.
Loeb lembra-se de que o avô o chamou em dezembro de 1999 para a primeira conversa, na saleta junto à biblioteca. Pediu que ele fizesse o projeto com Eduardo de Almeida e Flávio Mindlin Guimarães, sobrinho de José Mindlin. Os três desenvolveram um primeiro esboço antes mesmo de haver um local definido, sem saber se a biblioteca seria pública ou privada. Mais tarde, por motivos pessoais, Guimarães se afastou do grupo.
Duas exposições
Loeb participou, também, da visita que o avô fez à USP com um grupo de 17 pessoas, na qual o reitor à época, Jacques Marcovitch, iria mostrar os terrenos disponíveis. Seria um passeio de micro-ônibus que partiria da reitoria. Foi aí, ao levantar os olhos e avistar o enorme gramado que havia adiante, que Mindlin olhou para o reitor e disse: “Que tal aqui?” A opção não havia sido cogitada. Depois de um longo silêncio, os visitantes deram uma volta protocolar. Aquele terreno tinha a ver com o eixo das humanas, o que era bom. Mas estava destinado à Faculdade de Direito, embora todo mundo já soubesse, mais ou menos, que ela dificilmente deixaria as arcadas do Largo de São Francisco.
Desde o início, nunca houve recursos integrais em caixa para a realização da obra. Foi tudo passo a passo: terraplenagem, fundações. Almeida e Loeb trabalharam juntos durante 12 anos. Mindlin acompanhou todo o projeto e visitou a obra em 2008. “Sempre muito otimista, muito feliz”, recorda-se Loeb, que experimenta sentimentos contraditórios pelo fato de o avô não estar presente na inauguração. “Embora eu gostasse que ele visse tudo pronto, acho que foi melhor assim. É uma opinião muito pessoal, mas acho que ver os livros fora de casa seria uma coisa muito delicada para ele.” Ao mesmo tempo em que se construía a nova sede, milhares de obras da coleção foram digitalizadas e somadas às que já podiam ser lidas no site www.brasiliana.usp.br. Entre as raridades figuram, por exemplo, a primeira edição da obra que narra a viagem ao Brasil de Hans Staden, alemão que foi aprisionado pelos tupinambás, publicada em 1557, e sua tradução brasileira diretamente do alemão, de 1900; a de História Geral do Brazil, de Varnhagen (1854); assim como primeiras edições de livros de Machado de Assis, como Dom Casmurro e Poesias Completas; e a coleção da Revista de Antropofagia (1928/29).
Quem quiser conhecer a biblioteca in loco poderá fazê-lo a partir de segunda-feira por meio de duas exposições do Instituto Brasiliana. A primeira, de longa duração, é “Não Faço Nada sem Alegria”, com painéis, fotos e vídeos sobre a vida de Guita e Mindlin, a formação do acervo e a cultura do livro, entre outros temas. A segunda, em cartaz até 28 de junho, é “Destaques da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin” e apresenta cem títulos, permitindo ao visitante que conheça itens valiosos da coleção.
Já por questões de organização da equipe, os pesquisadores só serão atendidos a partir do dia 2 depois de agendamento por e-mail (colaborou Luíza Mendes Furia).
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Maria da Paz Trefaut, para o Valor Econômico