Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Malabaristas contra o exército de roxo

Quando fundamos o sebo By The Book, em meados dos anos 80, Luis Marcelo Mendes e eu não tínhamos mais que 500 livros e 20 anos. Acreditávamos, piamente, que revolucionaríamos o mercado livreiro da cidade. Para isso, bastava apostar em uma exposição arejada dos livros, bom acervo, que não primava pela quantidade, bom preço e a organização de eventos para atrair público para a ignota rua Conselheiro Saraiva, no lado mais obscuro da então abandonada Praça Mauá.

Iniciamos os trabalhos com um pocket show de Nelson Sargento, ao qual, além dos sócios, compareceram duas testemunhas da revolução que se gestava: Fausto Fawcett e o fiscal do Ecad. O mestre do samba nunca mais tocou para tão poucos. Nós entregamos as armas um ano depois. Nada a lamentar. A cidade permitia esse tipo de experimentação (um sebo no jirau de um mercado), havia no início dos anos 90 uma efervescência que resultou em 323 pontos de venda de livros, segundo Ubiratan Machado registra em sua História das livrarias cariocas (Edusp). E abriam e fechavam como o fazem hoje essas lojas de iogurtes. Desse movimento kamikaze surgiu a última fornada de jovens livreiros.

Quase 25 anos depois, um cliente emblemático da Berinjela, o Sr L. (o mesmo que o jornalista Alvaro Costa e Silva, vulgo Marechal, gosta de alardear que se estapeou com outro cliente por um livro de Aldir Blanc), dizia em um de seus monólogos que não existia objeto tão perfeito como o livro. Que talvez só a roda pudesse se equiparar a ele. Que esse negócio de tablete nunca substituiria o prazer de folhear uma página. Que, por mais que atacassem o livro como objeto, o que o resgataria para a Humanidade e, consequentemente, para os leitores, seria a melancolia.

Em outro monólogo, o sr L. se dirigiu até a porta da livraria e esbravejou que o exército de roxo não o destruiria. E foi embora sem comprar nenhum dos dez livros separados para ele. Olhamos ao redor e notamos que havia um sujeito vestido com uma camiseta roxa na seção de filosofia. Em sua última visita, com um garfo na mão, avisou que o exército de roxo tinha se aliado aos de amarelo e azul, o que inviabilizaria sua permanência na loja. Entendi: deve ser infernal enfrentar roxo, amarelo e azul diariamente.

De alguma forma, todas as especulações que cercam o futuro do livro e sua comercialização, e que fazem este momento ser particularmente interessante, criam, para boa parte do setor livreiro, um monstro de diversas tonalidades.

Poucos e bons

Apesar de um velho editor ter me avisado que livraria vende livros, confesso que já me vi tentado a diversificar os produtos da loja. Uma canequinha com a cara do João Cabral, um pinguim fazendo pose de pensador, cartazes de filmes, frases-clichê em camisas baby look. De certa forma, todos os eventos que fizemos na Berinjela, os shows, os lançamentos, os campeonatos de futebol de botão, os sábados da antológica revista Inimigo Rumor, a coedição da revista Modo de Usar, que tinham como intuito ampliar e renovar clientela, driblavam o alerta do senhor Ênio Silveira. Isto é comum a todas as livrarias cariocas. Temos essa vocação de malabaristas no sinal de trânsito. Antes de livreiros, somos homens-sanduíche do nosso comércio.

No entanto, vejo um esgotamento no modelo que transforma a pequena livraria em uma arena multiuso de atividades sem fim. Talvez, o foco deva ser como fazer frente às super, hiper, megalivrarias que, sem nenhum pudor, vendem em seus sites lançamentos esperados como Toda poesia, de Paulo Leminski, com 20% de desconto sobre o valor de capa e o cobrado em suas lojas físicas. Prática que as assemelham à gigante recém-chegada que teve o desplante de aportar no país atuando apenas na venda de e-books e, principalmente, do aparelhinho que ficará obsoleto no ano que vem. Talvez um gênio do sistema ensine que esse é o caminho, mas parece um tiro no pé, por retirar seu próprio público da livraria, e um tiro na cabeça da concorrência, que não tem o mesmo poder de negociação junto às editoras. Essa política predatória se dá na falta de uma lei de preço único, praticada com sucesso em países como França, Argentina e México, por exemplo, e que permitiria comprar Monodrama, de Carlito Azevedo, na tradicional livraria Padrão do senhor Alberto ou nos grandes magazines. O preço único é a única garantia real de diversidade, de escolha.

Aqueles que divergem do estabelecimento de uma lei de preço único se escudam na famigerada lei do mercado: se é possível fazer um desconto, dizem eles, por que não fazê-lo em prol de um alcance maior de leitores? Escondem que a discussão de fundo é o preço extorsivo do livro. Se as editoras cedem 50% do valor de capa para as grandes redes e 40% para as pequenas livrarias, pois que abaixem o preço de capa e pratiquem o mesmo desconto para todos.

Os sebos estão na penúltima etapa da cadeia do livro, aqui se afere quais livros encalharam, quais se tornaram procurados ou raros. Servem, portanto, como medidores do mercado. Nossos fornecedores são particulares que vendem suas bibliotecas pessoais. A tarefa primordial é separar o trigo do joio, encontrar Aspiro ao grande labirinto, de Hélio Oiticica, que vende que nem pão quente; “A literatura e o mal”, de Bataille; os livros de Waly Salomão que a menina argentina precisa para sua tese de doutorado na Universidade de Buenos Aires; as edições da Livros do Mal. Esses e outros tantos títulos são cada vez mais escassos, não só porque estão esgotados, mas porque não há estantes para abrigá-los. O paradoxal é que, apesar do gigantismo, nas grandes livrarias, salvo raras exceções, há pouco espaço para riscos.

A verdadeira Lei Tostines dos livros é: quanto mais livrarias maior diversidade de títulos, maior abrangência de temas e menor pasteurização do gosto. O grande desafio é equacionar o preço dos imóveis para uma atividade de baixa/média rentabilidade. Hoje, a cidade precisa de uma política direcionada para o mix de comércio, sob pena de o prefeito inaugurar, para os grandes eventos vindouros, bulevares de drogarias, bancas de jornal e bancos. O boom imobiliário asfixia o pequeno comércio varejista, o que poderia ser revertido com a concessão mais criteriosa de alvarás e isenção de IPTU. Afinal, precisamos de uma cidade que incentive seus jovens a serem tão pretensiosos e românticos como aqueles que se instalaram nas portas dos fundos do Centro, para que construam sua babel, quebrem a cara ou continuem o legado de seu Osmar, Aluízio, Margarete, Vanna ou Anna Dantes. Quem vive a cidade e gosta de livros conhece esses nomes.

Às pequenas livrarias e sebos, como diz minha sócia e irmã Silvia Chomski, cabe apostar na diferença, como fazem Folha Seca, Da Vinci, Argumento, Baratos da Ribeiro ou Poesia Incompleta. Investir na qualidade de acervo, buscar catálogo e não a novidade que empurrará o lançamento do mês passado para fora da prateleira e, principalmente, valorizar o atendimento. Somos poucos e o exército de roxo avança.

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Daniel Chomski é livreiro, fundador do sebo Berinjela, em atividade desde 1994