Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Acervo do escritor é aberto ao público em BsAs

O lugar escolhido para guardar um verdadeiro tesouro literário foi um típico casarão antigo de Buenos Aires, daqueles que lembram as primeiras décadas do século passado. Quem passa pela pequena porta, no bairro de San Cristóbal, vê apenas uma escada de mármore e a placa da Fundação Tomás Eloy Martínez, criada por um dos sete filhos (Ezequiel Martínez) do célebre jornalista e escritor argentino, morto em 2010, aos 75 anos.

O que poucos sabem é que no fim dessa escada está o arquivo pessoal de Eloy Martínez, uma herança de valor incalculável, que sua família, seguindo à risca a vontade do escritor, colocou à disposição de estudantes de jornalismo, professores de literatura, acadêmicos em geral e todos que estiverem interessados na obra desse grande nome da literatura latino-americana. A lista de documentos é riquíssima e abrangente: manuscritos (digitais e em papel) de novelas e contos inéditos e de seus maiores sucessos, entre eles “Santa Evita” e “O romance de Perón”, entre outras maravilhas.

Tudo foi cuidadosamente guardado pelo escritor ao longo de décadas (nos diferentes países em que viveu, como Venezuela e Estados Unidos) e organizado, durante mais de um ano, por uma equipe comandada pela comunicadora social Ana Prieto.

‘Tomás guardava tudo’

Para ela, que por mais de 12 meses trabalhou de sol a sol com Florencia Buret, Lucia Capalbi e Vanesa Pafundo, o principal objetivo do arquivo é “que a obra de Tomás circule, principalmente a parte menos conhecida e que não está nas livrarias”.

– Tomás guardava tudo, desde manuscritos de suas novelas, até artigos publicados em jornais. Grande parte do arquivo está em papel, porque ele só começou a usar computador em meados da década de 1990 – conta Ana, agora encarregada de administrar o arquivo.

A parte mais difícil de seu trabalho, reconhece ela, foi pensar a melhor maneira de catalogar uma quantidade tão grande de material. Nos primeiros três meses, lembra Ana, “a sensação que tínhamos era de que não acabaríamos nunca”. Mas as soluções foram aparecendo e com elas tudo foi ficando mais fácil. Finalmente, o arquivo foi dividido em três partes essenciais: manuscritos originais (em papel e versão digital); pesquisas (algumas exaustivas) realizadas por Eloy Martínez antes de escrever; e publicações na imprensa (artigos do escritor, críticas de sua obra e entrevistas). Mas não termina por aí. No arquivo podem ser encontradas, ainda, cartas enviadas ao escritor por colegas como o argentino Ernesto Sábato, o peruano Mario Vargas Llosa e o paraguaio Augusto Roa Bastos.

Entre os inéditos de Eloy Martínez, destaca-se a novela “El Olimpo” (leia trecho aqui), que o escritor começou a preparar em 2006 e na qual trabalhou até o fim da vida. Apesar de ter lutado vários anos contra um câncer, ele nunca parou de trabalhar (várias horas por dia).

– Muitas vezes penso que ele esticou sua vida ao máximo, pela vontade de terminar a novela. É um texto curto, talvez seja publicado, não sabemos – diz Ezequiel, que divide seu tempo entre a fundação, um dos últimos desejos do pai, e a edição do suplemento cultural do jornal “Clarín”.

A última novela de Eloy Martínez conta uma história na qual os clássicos deuses do Olimpo grego chegam, em sua busca pela mortalidade, ao centro clandestino de detenção, tortura e assassinato de presos políticos El Olimpo, que funcionou durante a última ditadura militar (1976-1983), no bairro portenho de Floresta. Como milhões de argentinos, Eloy Martínez teve sua vida (em seu caso, também sua obra) marcada pelo regime militar mais sinistro e violento da História do país. O escritor rumou para o exílio e, quando falava dessa experiência, revivia o sofrimento, sobretudo pela distância dos filhos. Esse passado que lhe causou tanta dor está presente em seu arquivo, não só em algumas novelas publicadas, como “Purgatório” (que fala sobre os desaparecimentos), e inéditas, como “El Olimpo”. Dezenas de artigos, colunas e entrevistas lembram sua passagem pelo jornal “El Nacional”, de Caracas, um de seus refúgios nos anos de chumbo.

Até mesmo para Ezequiel, o arquivo do escritor trouxe descobertas. O trabalho de seu pai na Venezuela, por exemplo, era desconhecido pela parte da família que ficou na Argentina. Eloy Martínez editou durante alguns anos o suplemento literário do diário de Caracas e realizou entrevistas históricas com os compatriotas Ernesto Sábato e Jorge Luis Borges. A conversa com Sábato foi publicada em 1979, no auge da repressão a opositores do regime militar argentino. “Durante duas manhãs dialoguei com Ernesto Sábato, autor de ‘Sobre heróis e túmulos’, na casa ensombrecida de magnólias que habita há mais de três décadas… Expliquei a Sábato que em Caracas não se conheciam seus comentários sobre ‘Abaddón, o exterminador’, a novela que publicou em 1974 e que já tinha vendido (antes da crise) 180 mil exemplares. Mas manter um diálogo sobre esse assunto lhe pareceu impertinente, agora que os argentinos estão obrigados a preocupar-se mais com a salvação de sua comunidade do que em cultivar sua fama. Decidimos, então, passar por cima de uma literatura em agonia e refletir sobre a situação política (e também moral) dos argentinos”, explica Eloy Martínez, na introdução de uma entrevista que qualquer jornalista ou simples fã dos dois escritores adoraria ler.

Preservar e manter unido todo esse acervo era uma das grandes preocupações do escritor. Em seu testamento, Eloy Martínez deixou um montante de dinheiro destinado à sua futura fundação, onde estaria, e como ele queria, seu arquivo. E assim aconteceu.

– Ele queria que tudo fosse aproveitado, sua biblioteca e seu arquivo, e hoje esse material está disponível para qualquer pessoa que tenha um interesse genuíno – assegura o diretor da fundação, que tem vários projetos em mente, entre eles parcerias com faculdades de Jornalismo e um prêmio literário, ambos pensados como incentivos aos novos talentos, algo que Eloy Martínez sempre considerou importantíssimo. Em entrevista ao Globo, uma das últimas que concedeu antes de morrer, o escritor defendeu a necessidade de cultivar e promover o que chamava de “um jornalismo de qualidade”, em meio ao que já era uma explosão de blogs e redes sociais.

– São formas de comunicação, bem-vindas, mas não jornalismo – enfatizara o autor.

Era um recado para as novas gerações de jornalistas e escritores, com as quais se entendia muito bem. Seus anos como professor e diretor do programa de Estudos Latino-americanos da Universidade de Rutgers, nos Estados Unidos (suas aulas e anotações também estão no arquivo), aproximaram-no dos mais jovens. Os que, na visão de Ana, devem “fazer circular a obra de Tomás”. É para eles, principalmente, que as portas do arquivo estão abertas.

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>> Leia trecho do romance inacabado ‘El Olimpo’

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Janaína Figueiredo é correspondente do Globo em Buenos Aires