Ao longo das últimas três ou quatro décadas, a variedade de livros técnico-científicos publicados no país ampliou-se consideravelmente. Até a segunda metade dos anos 70, por exemplo, diversas disciplinas universitárias eram desprovidas de qualquer livro-texto em português. Os estudantes de então tinham de consultar obras importadas, sobretudo aquelas publicadas em espanhol (e.g., MARGALEF 1974, STRASBURGER et al. 1974, BARNES 1977, ORR 1978). O problema maior nem era o idioma, eram os preços… Hoje em dia, praticamente todas as principais disciplinas científicas dos cursos de graduação contam com um elenco variado de obras de referência em português, incluindo alguns dos melhores títulos disponíveis no mercado internacional. Duas publicações recentes, TRIPLEHORN & JOHNSON (2011) e BARRY & CHORLEY (2013), servem para ilustrar o que estou dizendo.
Alguns problemas graves, no entanto, persistem. É o caso da proliferação de erros e mal-entendidos em obras traduzidas (ver, neste Observatório, o artigo “Nem sempre é culpa da mídia”), lembrando que a maioria dos livros-textos disponíveis em português foi originalmente publicada em outro idioma. É igualmente constrangedor perceber que, mesmo em termos puramente gráficos, as edições impressas no país nem sempre se equiparam aos originais. Não há dúvida de que o conteúdo é o mais importante e, por isso mesmo, o cuidado com a tradução deve ocupar o primeiro lugar na lista de prioridades. Isso não impede, contudo, que sejam observados alguns cuidados mínimos com a estrutura física do livro – e.g., a escolha do papel apropriado para a capa e o miolo; o tipo e o tamanho das fontes; as proporções entre as margens e a mancha de impressão; o tamanho, a posição e a qualidade das ilustrações.
O livro como mercadoria
Não são poucas as obras que pecam tanto pelo conteúdo como pela aparência. Um problema particularmente grotesco é a questão das reproduções fotográficas. A julgar pelo resultado final, a sensação que tenho é a de que certas editoras não se acanham em fotocopiar – e mal – os originais. Algo semelhante ocorre ainda hoje na reprodução das páginas que trazem a bibliografia. O resultado deste último expediente chega a ser cômico, notadamente quando o autor fez comentários ao lado de algumas referências bibliográficas. Se o editor brasileiro apenas copia e cola, a bibliografia da edição em português aparece com comentários feitos em outro idioma – uma barbeiragem que já soa como desleixo. De uns anos para cá, surgiu uma fonte adicional de barbeiragens. Estou me referindo ao modo como os materiais suplementares, notadamente discos ópticos e sítios eletrônicos (contendo animações, exercícios, sugestões de atividades, textos adicionais etc.), criados especialmente para os leitores da obra, vêm sendo (ou não) incluídos na edição brasileira. Como regra geral, esse material não está sendo traduzido, aparecendo apenas no idioma original ou simplesmente sendo omitido.
Esses e outros problemas típicos do mundo dos livros dificilmente são captados pelo radar da imprensa. A rigor, a única editoria que parece manifestar algum interesse genuíno pelos livros é a de economia. E aí, evidentemente, o interesse é outro: o livro como mercadoria e a indústria livreira como um negócio lucrativo. A tônica entre nós tem sido essa. Veja o caso da matéria “Mercado de livros cresce e já aparece como 9º no mundo”, de Mariana Barbosa, originalmente publicada na Folha de S.Paulo, em 3/11/2012, e reproduzida, dias depois, neste Observatório – ver “Mercado brasileiro é o 9º no mundo”.
A notícia de que o mercado brasileiro seria um dos 10 maiores do mundo pode parecer auspiciosa. Afinal, deixa transparecer a ideia de que teria havido um aumento no consumo de livros, o que, por sua vez, reanima em alguns observadores a crença de que “estamos lendo mais”. Ocorre que um aumento na quantidade de exemplares impressos não implica em uma ampliação na variedade temática. Se o número de livros publicados cresce de um ano para o outro de 150 milhões para 200 milhões de exemplares, digamos, podemos corretamente concluir que houve um aumento na produção. Resta saber se tal aumento foi provocado pelas tiragens extraordinárias de umas poucas obras ou se foi o resultado de uma ampliação no catálogo das editoras. Na ausência de tal distinção, o leitor é facilmente induzido a erros e mal-entendidos.
Sociedade e mercados
Antes de prosseguir, cabe aqui outra ressalva: os termos “sociedade” e “mercado”, ao contrário do que alguns imaginam, não significam a mesma coisa e, portanto, não devem ser tratados como sinônimos. Uma sociedade pode ser definida como um conjunto de indivíduos que convivem em determinado lugar, partilhando de alguns valores culturais semelhantes – idiomas, crenças religiosas, princípios morais etc. Querendo ou não, todos os seres humanos integram alguma sociedade. Estas variam muito em tamanho, desde agrupamentos locais mais ou menos coesos, como no caso de uma pequena aldeia indígena, até coletividades bem mais amplas e frouxas, como no caso de uma nação.
O mercado é um conceito econômico. Podemos defini-lo como um conjunto de entidades (e.g., empresas e consumidores) cujas relações são regidas pela compra e venda de bens ou serviços. Os mercados não são tão democráticos e inclusivos como as sociedades: deles só participam aqueles indivíduos (“produtores” ou “consumidores”) que são capazes de produzir ou consumir determinados bens ou serviços. Cada bem ou serviço tem um mercado próprio, o que justifica dizer que uma única sociedade pode abrigar simultaneamente diversos mercados.
Enquanto o tamanho de uma sociedade varia de acordo com o tamanho da população, este parâmetro nem sempre nos informa a respeito dos mercados. Essa distinção ajuda a explicar porque países populosos, mas extremamente pobres, como é o caso da Nigéria (170,9 milhões de habitantes; renda per capita de US$ 1,428), ainda são tão carentes em bens e serviços essenciais [os dados econômicos (relativos ao ano de 2011) mencionados ao longo deste artigo foram extraídos do sítio do Banco Mundial (ver aqui); os dados demográficos (relativos principalmente aos anos 2011-2013, dependendo do país) foram extraídos da Wikipedia, entrada “List of countries by population” (acessos em 16/6/2013)]. Também ajuda a explicar porque países bem menos populosos, mas extremamente ricos, como é o caso da Suécia (9,6 milhões de habitantes; renda per capita de US$ 56,373), estão abarrotadas de bens e serviços, muitos dos quais são inteiramente supérfluos e desnecessários.
Os mercados crescem e se multiplicam. Veja o que aconteceu com a Espanha e o Brasil ao longo das últimas décadas. Entre 1980 e 2010, por exemplo, o PIB (Produto Interno Bruto) da Espanha passou de US$ 226 bilhões para R$ 1,383 trilhão, enquanto a população cresceu de 37,5 milhões para 46,5 milhões de habitantes. No mesmo período, o PIB do Brasil passou de US$ 235 bilhões para US$ 2,143 trilhões, enquanto a população cresceu de 123 milhões para 190,7 milhões. Feitas as contas, descobrimos que a renda per capita subiu nos dois países: na Espanha, passou de US$ 6,027 para US$ 29,742 (um crescimento de 394%); no Brasil, passou de US$ 1,911 para US$ 11,238 (488%). Em ambos os casos, o aumento na renda per capita favoreceu tanto a ampliação de mercados antigos como o surgimento de diversos mercados novos.
O mercado livreiro…
O mercado livreiro não é muito diferente dos demais. Um exame um pouco mais demorado revela, no entanto, certas particularidades. Por exemplo, nem o PIB nem a renda per capita servem como indicadores seguros da variedade de novos títulos que a cada ano aumentam o acervo bibliográfico de um país. A variedade temática também não é um reflexo simples e direto do número de falantes de cada idioma. Compare, por exemplo, o universo de obras publicadas em português (202-216 milhões de falantes) com o universo de obras publicadas em idiomas com menos falantes (ao menos como língua nativa), como é o caso hoje do japonês (122-126 milhões de falantes), do alemão (84-100 milhões), do francês (69-110 milhões) e do neerlandês (21-23 milhões) [os dados linguísticos foram extraídos de LEWIS, M. P.; SIMONS, G. F. & FENNIG, C. D., eds. 2013. Ethnologue: Languages of the World, 17th edition.Dallas: SIL International (disponível aqui); complementados com dados da Wikipedia, entrada “List of languages by number of native speakers” (acesso em 16/6/2013)]. Contrariando a supremacia demográfica, a variedade temática em português é a menor. É importante registrar, no caso específico do neerlandês, que muitos livros publicados nos Países Baixos são impressos apenas em inglês, uma indicação de que o mercado livreiro daquele país também está de olhos voltados para os consumidores de outros países.
Ainda no âmbito das comparações transnacionais, vale a pena registrar aqui certos contrastes que existem entre países que falam um mesmo idioma – e.g., Brasil e Portugal, Espanha e México. Nesses casos, o tamanho do mercado livreiro parece refletir a longevidade histórica da sociedade letrada mais antiga. Veja o caso do Brasil e de Portugal. A despeito das grandes diferenças demográficas e econômicas, em Portugal (10,6 milhões de habitantes; renda per capita de US$ 22,474) são publicados a cada ano 7,4 títulos para cada grupo de 10 mil habitantes, enquanto no Brasil (193,9 milhões de habitantes; renda per capita de US$ 12,770) esse valor cai para 2,8 títulos [os dados sobre o número de títulos publicados em cada país (em geral relativos aos anos 2010-2012, embora em alguns casos os registros sejam bem mais antigos) foram extraídos da Wikipedia, entrada “Books published per country per year” (acesso em 16/6/2013). Esses dados foram extraídos de diversas fontes primárias, o que é por si só um problema. Além disso, as estatísticas não estão padronizadas. Significa dizer que não foi possível saber quando os números citados se referiam apenas às primeiras edições (= obras novas) ou à soma das primeiras edições com as reedições (= versões atualizadas de obras publicadas em anos anteriores) ou mesmo com as reimpressões (= mera reimpressão de obras publicadas em anos anteriores). A propósito, muitas editoras brasileiras têm ainda hoje o (péssimo) hábito de anunciar como “nova edição” o que é apenas uma “nova impressão”]. Uma diferença que acompanha a maior longevidade da sociedade portuguesa (como sociedade letrada).
O mesmo resultado foi obtido em comparações equivalentes envolvendo outros pares de países – i.e., Espanha (renda média anual de US$ 31,383) vs. México (US$ 10,267); Reino Unido (US$ 38,704) vs. Estados Unidos (US$ 47,445) ou Reino Unido vs. Austrália (US$ 59,861). Em todas essas comparações, a média anual de livros publicados per capita é maior na sociedade letrada mais antiga, não necessariamente na mais rica ou na mais populosa. No México, por exemplo, são publicados a cada ano 2,3 títulos para cada grupo de 10 mil habitantes; na Espanha esse valor sobe para 18,3 títulos. Na Austrália e nos Estados Unidos são publicados a cada ano, respectivamente, 3,7 e 10,4 títulos para cada 10 mil habitantes; no Reino Unido, são 32,6 títulos.
… e o desempenho acadêmico
Deixando de lado o critério linguístico, fiz uma comparação envolvendo as médias anuais dos 43 países que mais publicaram livros nos últimos anos [em termos absolutos, essa lista de 43 países foi encabeçada pela China (328.387 títulos), seguida dos Estados Unidos (328.259), Reino Unido (206.000), Rússia (123.336), Alemanha (96.273), Espanha (86.300), Índia (82.537), Japão (78.555), França (67.278), Irã (65.000), Itália (59.743) e Brasil (54.754); os últimos da lista foram Austrália (8.602), Áustria (8.056) e Portugal (7.868)]. Os primeiros colocados foram os seguintes: em primeiro lugar, o Reino Unido (32,6 títulos para cada grupo de 10 mil habitantes); em segundo lugar, a Suécia (32,2 títulos); em terceiro, a Finlândia (25,1); em quarto, Singapura (22,6); em quinto, a Dinamarca (22); em sexto, Hong Kong (20,4); em sétimo, os Países Baixos (20,3); em oitavo, Taiwan (18,6); e, em nono, a Espanha (18,3). Os Estados Unidos (10,4) ficaram em 16º lugar, Portugal (7,4) ficou em 26º, a Austrália (3,7) em 32º, o Brasil (2,8) em 35º, a China (2,4) em 38º, o México (2,3) em 39º e a Índia (0,7) em 43º.
No cômputo geral, essas médias tendem a acompanhar a renda per capita de cada país, embora essa relação não seja de todo clara e direta. O mais interessante, no entanto, foi descobrir que os valores mencionados acima parecem estar associados a parâmetros sócio-culturais relevantes. Chamou especial atenção o padrão de concordância observado entre a média de títulos publicados em um país e o desempenho dos seus estudantes no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA, na sigla em inglês), um programa de avaliação promovido desde 1997 pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD, na sigla em inglês) – para detalhes, ver aqui.
Nas provas do PISA, traduzidas e com conteúdo idêntico para todos os alunos, são cobrados conhecimentos de Ciências, Matemática e Leitura. Na edição de 2009, foram avaliados estudantes de 65 países – i.e., os países integrantes da OECD, além de alguns convidados, entre os quais o Brasil. O desempenho dos estudantes brasileiros tem deixado a desejar. Em 2009, por exemplo, a média dos brasileiros foi significativamente inferior à média geral (para ter acesso aos resultados, veja o arquivo [~110 kb] que está disponível aqui . O curioso é que o desempenho dos estudantes de diferentes países parece acompanhar o comportamento da respectiva indústria livreira. Em 2009, 29 dos 34 países com variedade temática superior à do Brasil tiverem um desempenho superior no PISA. Cabe notar que quatro dos outros cinco países (Bielorrússia, Irã, Malásia, Ucrânia) não participaram dos testes naquele ano. A rigor, portanto, apenas um país (Argentina) com média de produtividade editorial superior à do Brasil teve um desempenho inferior nos testes da OECD.
Coda
Uma análise comparativa sugere que o mercado livreiro do Brasil ainda é bastante acanhado em termos de variedade temática, embora possa estar passando por uma fase vigorosa em termos de exemplares impressos. Não há duvida de que o crescimento observado nas últimas décadas teve a ver com a ampliação dos catálogos, mas foi puxado principalmente pelo aumento nas tiragens. Nesse sentido, podemos dizer que o crescimento tem sido essencialmente “vegetativo” – i.e., mais exemplares têm sido impressos, sem que a variedade temática aumente na mesma proporção.
Identificar as causas desse crescimento está além dos objetivos deste artigo. Antes de terminar, no entanto, eu arriscaria sugerir dois possíveis candidatos. Por um lado, no âmbito específico do ensino superior, deve-se atentar para o aumento ocorrido no tamanho da população estudantil. Por sua vez, no âmbito do ensino fundamental e médio, deve-se atentar para a institucionalização dos programas governamentais de aquisição de livros didáticos e paradidáticos. Graças a esses programas, iniciados ainda nos anos 90, as editoras que vendiam umas poucas dezenas de milhares de exemplares a cada ano passaram a vender entre centenas de milhares e alguns milhões de exemplares.
De um ponto de vista estritamente econômico, pouca diferença há entre vender 100 milhões de exemplares de um único título ou vender 100 mil exemplares de 1.000 títulos diferentes. (A rigor, a primeira opção é a mais lucrativa.) De um ponto de vista literário, no entanto, essas alternativas representam dois mundos completamente diferentes. A maior variedade temática é quase sempre a situação preferida, havendo boas razões para isso – e.g., a variedade amplia o leque de temas e assuntos tratados, expõe novas contradições, aprofunda a discussão etc. Em termos culturais, portanto, importa muito saber se o aumento na produção está sendo ou não acompanhado de uma ampliação na variedade temática. Não basta dizer – como é típico das editorias de economia – que o mercado livreiro está gastando mais papel; é necessário saber se isso está sendo acompanhado por uma correspondente ampliação na variedade temática.
Referências
BARNES, R. D. 1977. Zoología de los invertebrados, 3ª edición. Ciudad de México, Interamericana.
BARRY, R. G. & CHORLEY, R. J. 2013. Atmosfera, tempo e clima, 6ª edição. Porto Alegre, Bookman.
MARGALEF, R. 1974. Ecología. Barcelona, Omega.
ORR, R. T. 1978. Biología de los vertebrados, 4ª edición. Ciudad de México, Interamericana.
STRASBURGER, E. et al. 1974. Tratado de botánica, 30ª edición. Barcelona, Marín.
TRIPLEHORN, C. A. & JOHNSON, N. F. 2011. Estudo dos insetos, 7ª edição. São Paulo, Cengage.
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Felipe A. P. L. Costa é biólogo e autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003) e A curva de Keeling e outros processos invisíveis que afetam a vida na Terra (2006)