O título do livro de Anélio Barreto pode servir como um epitáfio aos jornais que agonizam e ao mesmo tempo como um diagnóstico das razões dessa agonia: morrerá mais rapidamente quem esquecer que a essência mesma do jornalismo é contar – e contar bem – boas histórias, com começo, meio e fim.
Por razões empresariais, industriais, estratégicas, econômicas e o que mais se queira usar como justificativa, os jornais impressos estarão em marcha acelerada rumo à irrelevância e à obsolescência que os levará à morte na medida em que insistirem em se tornar registros formais e sem vida das notícias de ontem.
Anélio foi um dos melhores repórteres que passaram pelo Jornal da Tarde na época em que ele revolucionou a imprensa brasileira. Uma das características dessa revolução foi o casamento que o jornal conseguiu fazer entre forma e conteúdo. Essa revolução consistiu em permitir e estimular que a linguagem gráfica com que se trabalhava a apresentação e o acabamento das reportagens fosse integrada à essencialidade do conteúdo e à própria forma em que o texto era elaborado. Um conceito de edição que até então não era usado nos jornais brasileiros.
Esse conceito fez com que alguns dos melhores repórteres, como é o caso de Anélio Barreto, se transformassem em excelentes editores, pois conseguiam dominar ao mesmo tempo a linguagem escrita e a linguagem gráfica, de forma que elas funcionassem plenamente integradas e resultassem numa edição harmoniosa. Foi isso que fez do JT um jornal diferenciado, inteligente, instigante e revolucionário, uma verdadeira referência no jornalismo brasileiro nos anos 1960 e 70.
Volta às origens
O dia em que se contar a história do Jornal da Tarde será possível verificar que a sua revolucionária trajetória editorial nunca conseguiu ser acompanhada por um equivalente êxito empresarial por razões que escaparam totalmente do controle dos profissionais que puseram em andamento aquele projeto notável, entre os quais se deve obrigatoriamente citar Mino Carta e Murilo Felisberto, que implementaram o conceito e foram responsáveis pela formação da equipe.
Anélio foi um dos muitos jovens que apareceram atraídos pelo brilho inusitado do projeto heterodoxo e empurrados pela inclinação natural para a aventura jornalística. Era um bancário forçado, obviamente fora do lugar, e em vez de passar o dia contando dinheiro, queria realizar a sua vocação, que era a de contar histórias.
A maioria dos jovens que formaram a agitada redação do JT daquela época tinha pouca vivência no jornalismo tradicional – e isso foi uma grande vantagem, porque eles não traziam o peso dos vícios e das convenções. Vinham todos, isso sim, com uma grande curiosidade intelectual, com uma poderosa vitalidade, pronta para se transformar em matéria prima para o desenvolvimento do talento natural que cada um cultivava à sua maneira.
Era moda na redação do jovem JT andar com um exemplar do livro Aos olhos da Multidão, de Gay Talese, embaixo do braço. O livro, que depois foi reeditado com o nome de Fama e Anonimato, é uma antologia de reportagens desse monstro sagrado da vertente chamada de new journalism, publicadas no The New York Times. O new journalism, no fundo, nada mais é que uma história geralmente de grande interesse humano, bem apurada, bem escrita, bem contada, muito informativa e muito agradável de ler. Uma definição um pouco mais pernóstica e pedante para isso é “jornalismo literário” – mas essa é uma discussão acadêmica, porque o uso da palavra literário pode franquear a algum espírito mais ousado a tentação de prescindir dos fatos e conceder privilégios à ficção, adulterando o verdadeiro sentido do jornalismo.
Cada um dos bons repórteres do Jornal da Tarde imprimiu seu modo particular de ver as coisas aos princípios gerais que Talese e outros grandes repórteres consagraram sem sistematizar ou normatizar. Assim, o new journalism brasileiro ganhou as tintas próprias de cada autor, de modo que a grande reportagem se tornasse identificável não por obediência a normas, regras ou princípios pré-estabelecidos, mas sim pela força do seu próprio vigor narrativo e pelo prazer derivado de sua fruição estética.
As reportagens reunidas neste livro, escolhidas pelo próprio Anélio, representam uma mostra extremamente significativa da fase mais intensiva de sua vida de repórter. Claro que um bom e verdadeiro jornalista nunca deixa de ser repórter – sua essência é essa. Mas há circunstâncias, que às vezes escapam de seu controle, que o obrigam a empregar seu talento nas tarefas internas de uma redação. Foram essas circunstâncias que o transformaram em editor durante uma parte considerável de sua carreira, mantendo as mesmas qualidades que consagraram o repórter.
Nesta antologia é possível avaliar a facilidade com que Anélio trafega entre assuntos tão diferentes e tão contrastantes de forma a imprimir a cada um deles o toque pessoal que dá sentido à estrutura do texto e provoca, ao final da leitura, a sensação de ter acabado de saborear, em forma de história, uma aventura humana de primeira grandeza.
Assim é com a narrativa da extraordinária vida de Frank Sinatra chegando aos 80 anos; com a visita ao implacável cenário de degradação humana numa Angola em guerra; nos personagens da subvida da cracolândia paulista; na história de vida do jogador Adriano, que nasceu na favela, virou Imperador, e alguns anos depois desse retrato acabou abandonando os palcos gloriosos da Europa para voltar às suas origens; na descrição da vida de Michelangelo Buonarotti, o gênio da Capela Sistina; no passeio pelo cotidiano da Daslu, templo paulistano do consumo de luxo.
Interesse humano
Um bom repórter não escolhe temas, e as reportagens que citei são uma prova disso. Mas há misteriosos atos da natureza humana que sempre seduziram Anélio, desde sempre um devorador de romances policiais. Tanto que escreveu um – O Roubo da Taça [Editora Sulina, 1998, esgotado]–, onde põe à prova a simbiose entre o talento narrador do jornalista rigoroso com os fatos e o do ficcionista com licença para criar.
Na coleção de reportagens aqui reunidas, Anélio presta tributo ao seu gênero preferido em quatro delas: um passeio com o autor de romances policiais Garcia-Roza pelo bairro do Peixoto, um raro microcosmo incrustado em Copacabana, onde ele localiza as aventuras de seu detetive, o delegado Espinosa; a história de Marquinho, aventuroso bandido adolescente; a reconstituição da tumultuada e doentia trajetória de vida do assassino do estilista Gianni Versace; o misterioso assassinato da ex-mulher do astro de futebol americano O.J.Simpson e seu amante – um crime até agora impune.
Mas é na detalhada, minuciosa, arrebatadora narrativa do crime da rua Cuba – o assassinato de um casal de alta classe média num bairro elegante de São Paulo, com as suspeitas recaindo sobre um filho deles – é que o sentido de reportagem alcança seu ponto mais alto. Publicada em série pelo Jornal da Tarde, culminou num acidente editorial sem precedentes (o jornal encerrou a série com uma edição desastrosa em que se insinuava a revelação do nome do assassino, o que a reportagem de nenhuma maneira autorizava).
Anélio se envolveu nos detalhes do crime como se fosse um investigador, para poder levar o leitor, através da sua narrativa, aos meandros da história. Não seria exagero dizer que, se o crime fosse a júri popular, o relato do repórter, de tão detalhado e completo, poderia fazer as vezes dos autos do processo – se fosse possível aspirar a autos de processo tão bem escritos.
Para citar de novo Gay Talese, quem está em crise no mundo hoje são os jornais, não o jornalismo. Se não existe mais espaço nos jornais para reportagens como as que este livro reúne, pior para os leitores. E se é pior para os leitores, é pior para os jornais. Quando eles se derem conta de que estão cada vez mais substituindo a narrativa de assuntos de interesse humano pela redundância da informação plana, rala, rasteira e sem o valor agregado da argúcia, da capacidade de observação, da inteligência e do talento narrativo, já pode ser tarde demais.
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Coletânea relembra era das grandes reportagens
[do release da editora]
Do bom repórter exige-se que saiba contar histórias com clareza e fidelidade aos fatos. E que, se possível, tenha competência para trafegar com naturalidade por assuntos diferentes. Seja capaz, por exemplo, de retratar a crueza de uma guerra civil com a mesma fluência e precisão com que produz o perfil de um personagem interessante.
Essência do verdadeiro jornalismo, a reportagem tem se tornado artigo raro na mídia mundial – particularmente no Brasil. A competição dos meios eletrônicos, a ideia de que o público já não se interessa por textos mais longos e a falta de uma equação capaz de gerar receita para sustentar um jornalismo de qualidade e profundidade na internet têm sido apontadas como as causas da lenta agonia desse gênero.
Quem espera que a reportagem sobreviva a esses dias difíceis pode fortalecer sua crença ao ler – ou reler – os textos produzidos por Anélio Barreto. Em Histórias que os jornais não contam mais,Anélio rememora 13 grandes reportagens publicadas em veículos como o Estadão e o Jornal da Tarde. Uma delas, “O crime da rua Cuba”, tão grande que precisou ser publicada em série.
Anélio passa com a mesma graça por temas históricos – como a vida do mestre Michelângelo – e contemporâneos, caso das reportagens sobre a “Cracolândia” paulistana ou a Daslu, sinônimo do consumo luxuoso. Retrata com sensibilidade personagens como o jogador Adriano e a então ministra Dilma Rousseff – entre outros personagens de hoje e do passado. Uma coleção de narrativas saborosas, abrilhantada por um incisivo prefácio do jornalista Sandro Vaia.
Sem enveredar para a discussão a respeito do futuro dos jornais e do jornalismo, Anélio Barreto dá provas de quanto a reportagem tem sido essencial o entendimento do mundo. A leitura da obra deixa uma única dúvida: por que, então, ela está desaparecendo?
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Sandro Vaia é jornalista