O jornalista Mark Leibovich escandalizou Washington com seu retrato debochado dos bastidores da confraria entre políticos, lobistas e jornalistas na capital americana. Espécie de balanço da era Obama, “This Town” narra inúmeros casos de promiscuidade entre o governo e empresas do setor privado.
Em 1975 Truman Capote publicou na revista “Esquire” os primeiros capítulos de seu romance de fundo autobiográfico “Preces Atendidas”. Em chave satírica, o autor de “Bonequinha de Luxo” revelou adultérios, brigas e facetas nada elegantes de algumas de suas amigas socialites. De nada adiantou escondê-las sob pseudônimos: durante anos, nova-iorquinos discutiram o “quem-é-quem” do livro. Capote foi defenestrado da alta sociedade que o acolhera e morreu, em 1984, sem concluí-lo.
Quase 40 anos depois, mas longe do glamour de Manhattan, Washington vive dias de escândalo e repete a lamúria: “Fomos traídos por um dos nossos”. O traidor, no caso é o jornalista Mark Leibovich. E a prova do crime é o livro “This Town – Two Parties and a Funeral” [Penguin, 386 págs., R$ 88,70; e-book: R$ 41,29 ], em que o correspondente da revista dominical do “New York Times” na capital americana descreve de velórios no Kennedy Center ao casamento em Las Vegas de um colega famoso da rede Fox News (com o bolo em formato de Casa Branca).
Não faltam os diversos jantares da Associação de Correspondentes da Casa Branca, o equivalente local da noite de premiação do Oscar. Celebridades, políticos e empresários desfilam no tapete vermelho da cidade conhecida como “a Hollywood de gente feia”.
Diferentemente de Capote, porém, Leibovich revela os nomes de todos os envolvidos. O retrato que resulta é muito mais debochado do que aquele pintado na série política “House of Cards”, sucesso do Netflix. Muita gente aposta, fantasiosamente, que o autor será estapeado se algum dia voltar às festas estreladas que frequentava.
Os bastidores da confraria de políticos, lobistas e jornalistas na cidade –ao redor da qual se reúnem os condados mais ricos do país e que tem uma taxa de desemprego de 5,7% (Nova York tem 9,6%, Los Angeles, 10%, e a Chicago de Obama, 9,3%)– contrastam com a economia americana e sua recuperação um tanto sem fôlego.
Era Obama
“This Town” também pode ser lido como o balanço das ilusões perdidas da era Obama, já que a história começa em 2008, em plena campanha presidencial que levou o primeiro presidente negro à Casa Branca. Obama e seu círculo mais próximo, políticos de Chicago, não escondiam seu desprezo pela promiscuidade da capital entre negócios e políticos, seu círculo de adulação e seu provincianismo. O então candidato tinha uma regra pétrea: nenhum lobista seria indicado a cargos no primeiro escalão do governo. Com seu idealismo e sua sobriedade, a equipe do democrata pretendia mudar Washington. Mas a capital riu por último.
Em 2008, os bancos de Wall Street entraram em colapso. Andrea Mitchell, apresentadora da rede de notícias MSNBC, continuava a cobrir a crise econômica e lutou o quanto pôde para continuar fazendo isso — apesar de ser mulher de Alan Greenspan, o ex-presidente do Fed, o Banco Central Americano, entre 1987 e 2006.
Conflitos de interesse multiplicam-se pelo livro. A tragédia ambiental do derramamento de petróleo no Golfo do México, por exemplo, é narrada como um saboroso negócio para Washington.
Para consertar sua imagem após a tragédia ambiental ocorrida em 2010, a BP, antiga British Petroleum, contratou grandes lobistas republicanos e democratas, além de um porta-voz do ex-vice-presidente Dick Cheney, e fez uma campanha de US$ 50 milhões na TV –com os serviços de dois “especialistas em comunicação”, o republicano Alex Castellanos e a democrata Hillary Rosen. Nas horas vagas, Castellanos e Rosen são comentaristas políticos da CNN.
Quem virou diretor de Comunicações da BP nos EUA, então, foi Geoff Morell, ex-correspondente na Casa Branca da rede de TV ABC, e que serviu dois governos (Bush e Obama) como porta-voz do secretário de Defesa. Os contratos da BP com o Pentágono, mesmo após o desastre, deram um salto: de US$ 1 bilhão em 2010 para US$ 2,51 bilhões em 2012.
Na mesma temporada, um assessor do Departamento de Tesouro foi para o banco Goldman Sachs, e Peter Orszag, diretor do escritório de Administração e Orçamento da Casa Branca, para o Citigroup, outra das instituições bancárias que receberam resgates bilionários e continuaram a distribuir bônus generosos enquanto o país afundava.
Segundo o livro, um dos melhores empregos na cidade é o de ex-diretor de Comunicações da Casa Branca. Nos dois anos desde que deixou o cargo de porta-voz de Obama, Robert Gibbs amealhou US$ 2 milhões em palestras e virou comentarista da MSNBC, canal que é o equivalente democrata do republicano Fox News.
Anita Dunn ficou apenas seis meses no mesmo cargo, em 2009, primeiro ano do governo Obama. Ainda que tenha ajudado a primeira-dama a lançar uma campanha contra a obesidade infantil, ela tornou-se lobista da indústria que combatia: começou a trabalhar para empresas alimentícias que lutam contra qualquer restrição à publicidade de fast-food para crianças. Além disso, também virou comentarista da MSNBC.
Secretário de imprensa de Bill Clinton durante o escândalo com a estagiária Monica Lewinsky, que quase custou ao presidente seu cargo em 1998, Joe Lockhart formou, com dois ex-assessores de Al Gore, uma firma “suprapartidária” de “negócios integrados” de lobby e “comunicação estratégica” –com faturamento de US$ 60 milhões ao ano– e que atuava em Washington defendendo os interesses da News Corp., de Rupert Murdoch. Mais tarde, deixou o escritório para ser chefe de comunicação corporativa do Facebook, na Califórnia, entre 2011 e 2012.
Mas o destaque máximo entre as trocas de opinião a soldo vai para o ex-deputado Richard Gephardt, democrata que representou por 28 anos um distrito proletário do Estado mais pobre dos EUA, Missouri, como grande defensor dos sindicatos.
Após deixar o Congresso, em 2005, transformou-se consultor sênior de um escritório de gerenciamento de crises e, dois anos mais tarde, abriu seu próprio escritório, com o qual, em 2010, faturaria US$ 6,59 milhões. Seus clientes incluíam o Goldman Sachs, a Boeing e Visa. O tema das consultorias prestadas era, invariavelmente, como derrotar demandas sindicais e protestos trabalhistas.
Foi também Gephardt quem, como deputado, apoiou resolução da Câmara para condenar o genocídio armênio de 1915, mas não teve problemas em, como lobista a serviço do governo turco, se transformar em ferrenho opositor da resolução, em troca de US$ 70 mil ao mês.
Os casos relatados exemplificam um movimento hoje comum. Em 1974, apenas 3% dos deputados largavam o Congresso para virar lobistas. Atualmente, esse é o destino de 50% dos ex-senadores e 42% dos ex-deputados americanos. A maioria permanece em Washington e abandona de vez seus Estados de origem.
O livro de Leibovich não poupa os colegas de profissão. O jornalismo da capital não sai nada bem do painel de “This Town”. “A patota não mudou”, ele escreve. O autor do livro assim descreve a situação dos repórteres de política, que moram na mesma cidade, encontram-se com as mesmas pessoas, usam as mesmas fontes e pertencem aos mesmos grupos de origem. “Eles chegam a suas perguntas de forma tão independente quanto uma classe de garotos da sétima série partindo do mesmo texto de geometria. Eles não precisam colar para chegar à mesma resposta.” Watergate virou história.
Nem tudo no livro, porém, são denúncias. Muitas passagens lembram o antigo colunismo social, que se encaixa bem no ambiente provinciano de Washington. Uma das regras para a sobrevivência na cidade é o “name dropping”: a cada frase, solta-se o nome de “amigos do peito” famosos.
“A principal identidade de Tedd McAuliffe”, ex-presidente do Partido Democrata e atual candidato a governador de Virginia, exemplifica Leibovich, é “ser amigo de Bill Clinton”. “Privá-lo de usar as palavras Bill Clinton' seria como privar um matemático de números”, escreve no livro.
Se alguém se salva (ou, mais que isso, se sai muito bem) neste “House of Cards” literário é Hillary Clinton. Leibovich reuniu desde histórias sobre seus instintos maternais para com funcionários gripados no Departamento de Estado até uma série de piadas comparando a eterna candidata à Casa Branca com o homem que a derrotou nas primárias democratas: ao repetir que Obama não tinha colhões para dirigir Washington, o ex-marqueteiro de Bill Clinton, James Carville, dizia que “se Hillary desse uma de suas bolas ao Obama, ele finalmente teria duas”.
E ainda traz um mantra favorito de Hillary, atribuído a Eleonor Roosevelt (outra primeira-dama lendária e ambiciosa como ela): “Mulheres na política precisam desenvolver uma pele tão dura quanto o traseiro de um rinoceronte”. Ao poupar a possível futura ocupante da presidência, Leibovich se demonstra menos kamikaze que Truman Capote –talvez por ser parte integrante de “This Town”, a Brasília americana.
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Raul Juste Lores é correspondente da Folha de S.Paulo em Nova York.