Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A democracia nas palavras de Millôr

Em 1986, Millôr Fernandes escreveu um frase, uma de suas muitas com o tom bem-humorado que marcou a trajetória de um dos maiores intelectuais do Brasil, que poderia muito bem ser usada para analisar acontecimentos recentes do país. Disse ele: “A diferença entre uma democracia e um país totalitário é que numa democracia – faça a sua pesquisa! – ninguém vive satisfeito.”

A frase fez parte de um texto de Millôr publicado na IstoÉ e está reproduzida no livro Millôres dias virão, de Breno Serafini. A obra, da editora gaúcha Libretos Universidade, foi lançada na quarta-feira (14/8), às 19h, na MiniBookStore, na Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio, com um debate entre Serafini e o pesquisador Henrique Rodrigues – não por acaso, a poucas quadras de onde Millôr morava e também dois dias antes do 16 de agosto, quando ele completaria 90 anos (o jornalista, escritor, ilustrador, dramaturgo e tradutor carioca morreu em 27 de março do ano passado, vítima de uma parada cardíaca).

Fruto da tese de doutorado de Serafini na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o livro analisa textos publicados por Millôr entre 1983 e 1992 nas revistas IstoÉ e IstoÉ/Senhor. O período foi escolhido pelo autor por ser o da primeira década de redemocratização do país. “Eu utilizo a obra do Millôr Fernandes para refazer a História do Brasil desde o atentado no Riocentro (o frustrado ataque a bomba em 30 de abril de 1981, durante shows comemorativos pelo Dia do Trabalhador) até os anos Collor”, explica Serafini. “A ideia foi investigar esse caminho de abertura do país a partir do trabalho de um intelectual que tratava de política sem tanto foco no senso comum. A ditadura sempre foi um tema importante para Millôr, assim como o que veio a seguir.”

provocação para atingir o ser humano

Nas 214 páginas do livro, Serafini compõe sua narrativa alternando as citações de Millôr com referências de outros autores que influenciaram ou dialogaram com sua obra e com suas próprias avaliações. Chama a atenção a atualidade das tiradas de Millôr, sobretudo se transpostas para um contexto em que políticos e instituições vêm sendo questionados pela sociedade. Em 1988, ele escreveu na IstoÉ/Senhor, por exemplo: “É enriquecedor observar o comportamento de alguns homens públicos. Participam de todos os fisiologismos, pragmáticas e falcatruas. Mas, porque votam numa ou noutra lei ‘progressista’, se acham, sinceramente, limpos e lídimos socialistas.”

“É um trabalho acadêmico, mas eu procurei não dar a ele um tom acadêmico. Minha dissertação de mestrado foi sobre as crônicas de Luis Fernando Verissimo. Então, estudar a obra de Millôr foi dar continuidade a uma investigação da mesma espécie, sobre humor e ideologias”, diz Serafini, que também é autor dos livros de poemas Mosaico laico e Geração pixel. “Tentei fazer um apanhado do papel dele como intelectual e das características de sua arte. A arte, na obra do Millôr, servia como provocação para atingir o ser humano. Fiquei muito satisfeito porque a família de Millôr recebeu o livro e aprovou o resultado.”