Na noite de 27 de maio de 1939, a poucos meses da eclosão da Segunda Guerra, representantes dos dois lados que logo estariam em conflito tiveram um encontro inusitado no Palácio da Guanabara, no Rio. No salão nobre da residência oficial do governo, uma desinibida Edda Mussolini, filha do líder italiano fascista, arriscava passos de samba e dançava animadamente com um diplomata nazista numa festa em que estava presente o chefe do Estado-Maior do Departamento de Guerra dos Estados Unidos, George Marshall.
Reconstituído com detalhes por Lira Neto, a partir de relatos da imprensa censurada pela ditadura do Estado Novo, o episódio indica o diapasão com que o autor afinou sua narrativa no segundo volume da competente biografia de Getúlio Vargas, que vai da chamada Revolução de 30 à sua deposição, em 1945. O autor, cujo trabalho está sendo financiado pela venda antecipada dos direitos autorais para o cinema, capricha nas imagens e oferece farta matéria-prima para ser aproveitada nas telas.
O livro, no entanto, está muito longe de ser apenas a base para um eventual roteiro. As muitas descrições, que estabelecem um andamento dinâmico da prosa, têm uma função que extrapola seu mérito estilístico: elas estão, quase sempre, a serviço da compreensão da história.
Uma contradição na raiz
A cena pinçada no primeiro parágrafo desta resenha, por exemplo, é paradigmática do método do biógrafo, ao encapsular, nas ilações feitas a partir de um baile, toda a política externa de Vargas, marcada, até aquele momento, pela equidistância entre o que viriam a ser o Eixo e os Aliados. É uma síntese visual que substitui, com vantagem, páginas de explicações convencionais.
Ao longo da leitura, a opção de Lira Neto, de abordar o essencial a partir do acessório, vai se revelando acertada. Afinal, aqueles 15 anos, que correspondem ao primeiro governo Vargas, são provavelmente o período mais esquadrinhado pela historiografia brasileira, situação que ameaça tornar redundante novos estudos. Se o autor contornou essa armadilha, foi porque soube emprestar frescor a uma história e a um personagem por demais conhecidos.
O período em questão é um divisor de águas. Getúlio Vargas herdou um país oligárquico, sedimentado nos 40 anos da Primeira República, e o modernizou, começou a industrializá-lo, deu-lhe uma rede de proteção social. Equilibrou-se entre os civis liberais e os tenentes autoritários para sustentar a Revolução de 30, sufocou o movimento constitucionalista em São Paulo, outorgou duas Constituições antagônicas, esmagou uma quartelada apoiada pelo comunismo internacional, rechaçou um golpe integralista, instaurou uma ditadura e, na guerra, apoiou a democracia contra a ditadura, contradição que está na raiz de sua queda.
Jovem executada como delatora
Tais passagens, exploradas em dezenas de livros, compõem o pano de fundo da biografia. Observadas em retrospecto, resfriadas pela análise, contadas da perspectiva de quem já conhece o fim da história, elas não despertariam maior interesse. Lira Neto, no entanto, evita essas pedras no caminho do escritor ao desenrolar a narrativa como se o desfecho fosse ignorado. Para tanto, usa o registro dos fatos à época em que aconteceram, e não por acaso os diários de Vargas ocupam espaço privilegiado entre as centenas de fontes consultadas. Com tal artifício, o biógrafo consegue manter o suspense com que os contemporâneos de Getúlio acompanhavam o noticiário, sem abrir mão do benefício do filtro histórico já estabelecido pela bibliografia.
As falhas em Getúlio não chegam a ser relevantes. Do ponto de vista estrutural, identifica-se, aqui e ali, um ruído nas conexões entre os blocos narrativos. Às vezes, são justapostos a partir de um critério apenas temporal, sem que haja associação entre eles. O capítulo 8, por exemplo, é dividido entre o relato das trapalhadas letais de Bejo, irmão de Getúlio, na fronteira argentina, e a instalação da Constituinte em 1933. A primeira parte é uma história eletrizante; a segunda, uma bem informada reconstituição dos bastidores políticos – mas uma coisa não tem a ver com a outra, o que compromete a intenção temática do capítulo.
Outro pequeno problema é a ocasional abertura excessiva de foco, resultado talvez da ambição de cobrir amplamente o período. Não contribui para a construção da imagem de Getúlio, por exemplo, a leitura do conhecido caso da jovem executada como delatora por ordem do líder comunista Luiz Carlos Prestes.
Um personagem e tanto
Quase nunca falta informação em Getúlio. Uma exceção, talvez, seja um dado no perfil do motorista que levava Getúlio para os encontros com a amante, Aimée, mulher de seu oficial de gabinete. Iedo Fiúza é descrito como diretor do Departamento Nacional de Estadas de Rodagem, mas faltou dizer, pelo menos a título de curiosidade, que em poucos anos ele seria candidato à Presidência da República, com apoio dos comunistas.
Um último reparo: há uma confusão entre os jornais A Manhã e A Manha. É evidente que se trata de um cochilo de revisão, que acrescentou um til indevido, mas o erro confunde o leitor, que fica sem ter certeza se a referência é ao órgão oficioso da Aliança Nacional Libertadora, que apoiou a chamada Intentona Comunista, ou à publicação satírica do Barão de Itararé. Para piorar, há um segundo A Manhã, jornal oficial do Estado Novo. No índice remissivo, os três aparecem como se fossem um só.
Se as ressalvas são pontuais e pouco importantes, isso se deve apenas ao fato de que o livro é muito bom. Escritor premiado, com trabalhos sobre José de Alencar e Padre Cícero, entre outros, Lira Neto está entre os melhores biógrafos profissionais do país. Seu Getúlio de meia-idade é um personagem e tanto: um político ambivalente que se considera um construtor de consensos, uma figura pública que antecipou as estratégias de marketing (exigindo que seus subordinados sorrissem em público ou cortando o próprio salário), um homem apaixonado que somatizava a ausência da amante.
Tarefa de excelente tamanho
O que emerge do livro é o homem público em sua dimensão privada, e vice-versa – um Getúlio que, na metáfora, como anotou uma reportagem da “Time”, “era um mestre na arte de tirar as meias sem descalçar os sapatos”, mas, na prática, como contava sua filha Alzira, considerava sobre-humana a tarefa de amarrá-los.
Prudente, Lira Neto prefere não cravar versões, quando a controvérsia parece insanável. Teria havido intenção de fraude histórica na origem do Plano Cohen, que serviu de pretexto para a ditadura? A cúpula militar estaria ou não envolvida na tentativa de golpe integralista? São perguntas que ficam no ar, sem uma resposta com todas as letras.
Lira Neto também não oferece uma nova interpretação de Getúlio Vargas nem se estende em análises sobre o período, mas seria inapropriado cobrar o autor por algo que ele não se propôs a fazer. Ter apresentado um ditador estadista com as nuances que ele merece e sem a poeira de décadas de história já é tarefa de excelente tamanho.
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Oscar Pilagallo é jornalista, coordenador de publicações do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial e autor de História da Imprensa Paulista (Três Estrelas)