Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O massacre da imprensa

O presente livro, sobre o qual teço aqui algumas considerações, apresenta dois temas sobre os quais é útil pensar: o Direito e a mídia. Não apenas para deles tirar relações de recíproca influência, mas em especial porque, neste momento, duas grandes mudanças, duas recentes, à falta de outro substantivo, “novidades” nos surpreendem. Uma nova ordem, que alguns – não minha opinião, com razão – identificam como um sopro de esperança para tempos mais democráticos, tem na aplicação do Direito e na força dos meios de comunicação social seus pontos de maior influxo. Súditos da lei e vassalos da mídia, eis aí os dois pontos essenciais sobre os quais discorre este livro.

O trabalho

O julgamento do mensalão foi para todos nós um marco da história do Judiciário. Assistir a esse momento, acompanhando-o em cada um de seus passos, representou uma experiência a todos os penalistas, que creio que não apostaríamos que tão cedo seria possível vivenciar. Mas faz parte da vida encontrar essas tais novidades, já que, ao menos em teoria, é missão do cientista captar o espírito dos tempos; quero dizer que os professores que muito se surpreendem com as mudanças talvez não estejam preparados para exercer suas funções, porque o conservadorismo, a reação ao inusitado, não deveria ser própria dos teóricos.

Ainda assim, tenho que dizer que tampouco suspeitava que alguns alunos do curso de graduação, tão jovens, tivessem consciência plena da importância do momento que o julgamento no Supremo representava. Porque, a deixa a adolescência para adentrar aos estudos jurídicos, falar em renovação da Corte Suprema, em ‘marco histórico’, é algo que tinha tudo para reverberar no vazio, à falta de vivência das décadas em que manter o poder político significava imunidade frente ao Judiciário. Não foi assim para alguns de meus ouvintes da FDRP/USP, que compreenderam que estava diante deles uma oportunidade única de aprofundar-se na experiência.

Dentre os estudantes que tinham tal percepção, Gustavo Mascarenhas deu um passo ainda além: notou que vivenciar esse momento significava retirar dele mais informações que o superficial. E registrá-las, porque o tempo flui. Assim, começando um trabalho de iniciação científica para, sob minha orientação, avaliar o trabalho da mídia e sua influência no resultado do caso, acabou por construir um registro que permite análise em muitos outros espectros: o trabalho árduo e competente dos defensores, as teses de defesa, as opiniões sobre a justiça ou injustiça dos resultados, a surpresa ou a conformidade com o desfecho do caso, já bastante desenhado. Talvez pudesse haver reflexões ainda mais abrangentes sobre o papel da mídia, mas sem dúvida o trabalho de Gustavo propicia material de consulta imprescindível para que, a partir dele, o leitor possa construir outras ilações. Material de consulta que, se fora colhido em momento futuro, poderia falsear resultados. A imediaticidade foi também grande mérito da sua iniciativa.

Uma mídia e dois ministros

Ler suas entrevistas e lançar sobre elas um ponto de vista teórico seria pouco honesto de minha parte. Elas são o que são, respostas de profissionais consagrados, agudamente inteligentes, conhecedores amplos do seu papel no universo jurídico. Decidi por fazer um pequeno relato da experiência mínima que também eu tive enquanto espectador e, por dizê-lo assim, “comentarista” do julgamento do mensalão. Comentarista que, sob escusa da neutralidade, talvez tenha calado alguma opinião que em seu momento era relevante lançar, mas que por conveniência ou covardia pura ficou apenas em rascunho. Algo simples, mas com uma mínima pretensão de justiça histórica, de cuja ocultação eu talvez esteja suficientemente arrependido.

Para tanto, preciso retroceder, primeiro, às vésperas do esperado julgamento da AP 470. Porque, de um modo tangencial, acabei por ser um dos tantos operadores dos meios de comunicação social na cobertura do evento, tarefa de que comentarei algo mais adiante. Fato é que um brilhante professor do Largo São Francisco se dispôs a capitanear uma equipe de, à minha exceção, outros excelentes penalistas que passaram a, diariamente, comentar no jornal Valor Econômico os temas jurídicos mais proeminentes do julgamento. Eu ali publiquei alguns textos, que abordaram assuntos que se impunham na pauta: ação penal originária, concurso de agentes, lavagem de dinheiro, e até alguns comentários acerca da possível influência da mídia no veredicto que então se desenhava. Nesse último tema, eu redigia apenas alguns leves comentários que a teoria narrativa me fazia observar: a mídia, como boa contadora de histórias, tratou logo de encontrar ou construir uma figura de herói e outra de antagonista, personificadas em dois ministros distintos, que os meios menos preparados logo maquiaram de anjo e demônio. Em grande parte essa impressão, durante os meses de julgamento, se desfez, mas houve um momento em que alcançou um clímax tão ficcional quanto injusto, que demandava, creio, também um esclarecimento sobre quem eram de fato os indivíduos por detrás dos figurinos da má imprensa, para quem o termo ‘novela do mensalão’, que ela mesmo alcunhara, nunca fora tão exato.

Pois em algum desses momentos em que eu me sentava ao computador para dar alguma coerência a um rascunho que seria impresso no jornal, no espaço reservado ao “julgamento do século”, chegou-me por email um escrito, que tinha por tema a pessoa do Ministro Ricardo Lewandowski. Era um texto lançado em um blog de uma revista famosa, redigido por um comentarista, acho que um homem do cinema, cujo currículo eu respeitava. Ausentes informações mais confiáveis que não as primeiras que o Google forneceria em uma busca superficial, o texto acusava o Ministro – perdoe-me recuperar o teor daquilo – de não ser mais que um advogado mediano, de poucas luzes, plantado pelo PT no Supremo para defender interesses partidários. O título do texto, aliás, buscando chamar a atenção para a leitura, neste mundo hiperinformado e poluído da internet, alardeava a locução “a Prótese do PT”, como predicativo do Ministro Lewandowski. Coisas da liberdade de imprensa, com a respectiva carga de responsabilidade de ofensa à personalidade, que a livre opinião manifesta exige honrar.

Fiquei entretanto extremamente deprimido ao ler o que ali se dizia, porque pela primeira vez, que fosse do meu conhecimento, a mídia fugia dos detalhes biográficos objetivos (ainda que selecionados por um ou outro ponto de vista), para uma adjetivação contundente e pouco fundamentada. Sentia eu a necessidade – rara, para quem queria manter o meio termo e vibrava com o jogo discursivo que se mantinha dia a dia – de contraditar aquela biografia de adjetivos para publicar algumas informações que decerto faltavam a quem desejasse falar sobre o tal Ministro. E me soava muito estranho esse reducionismo intencional porque no currículo do autor do texto que eu já acreditava muito ofensivo repousava, como obra principal, um livro biográfico que me parecia suficientemente criterioso.

Porém, notava que, para que eu transformasse o texto que eu deveria escrever em um contraditório às ofensas ao Ministro, teria de vencer, ao menos, dois pontos distintos de resistência.

Relato: dentro do STF

O primeiro deles era mais facilmente superável. Trata-se de dizer que a experiência e alguma técnica de análise discursiva me concedem a certeza de que falar de honra e moral ilibada, ao menos utilizando esses termos, é sempre algo muito perigoso e raramente útil. Já assisti – como a grande maioria dos advogados deste país – a sessões de julgamento, cerimônias de desagravo ou homenagens no Parlamento, que enunciam predicados de “ilibada moral”, “homem de princípios” e “honestidade ímpar” a indivíduos publicamente venais. Adjetivos são simples de enunciar, e parte de sua função é mesmo idealizar qualidades ausentes nos homenageados. Nesse sentido, um texto meu que dissesse que o Min. Lewandowski é um homem correto poderia ter efeito contrário, para um leitor menos acostumado a meu estilo de escrita e mais habituado a cerimônias de entrega de medalhas a autoridades. Meu ponto de resistência encontrava-se então, exatamente, em não querer fazer um texto para enaltecer alguém, porque isso é típico da propaganda da ditadura. Ou porque o ministro não precisava de advogado.

O segundo ponto de resistência era maior, e aqui tem de ser superado para que este texto se publique. E também é biográfico. É que eu fui assessor do Ministro Lewandowski no Supremo Tribunal Federal, durante um tempo curto. Curto porque, em meio ao exercício de tal função, surgiu vaga para concurso de professor na USP. Bom, isso são questões pessoais, menos importantes. O fato é que, decepcionando pelo constrito tempo de minha estância, prometi a mim mesmo (e talvez ao próprio Ministro, não me lembro), que não usaria da minha vivência no Supremo para promoção pessoal, ou para uma advocacia voltada àquela Corte. Mencionar o mínimo possível essa incrível experiência era algo a que eu me obrigava. [Decerto que já publiquei um texto narrando algo dessa experiência, mas sem nenhuma contextualização jurídica. Apenas fiz uma comparação de estilos de escrita, em um ensaio voltado a reflexões sobre narrativa e estética.]

Para materializar em meu texto essa intenção, entretanto, seria necessário mencionar aqueles tempos. E deles falar com sinceridade, o que é algo mais trabalhoso na enunciação, porém compensador. Eu pensava escrever, em tal coluna jornalística, que minha própria biografia não tinha muitos mais dados relevantes que este: que eu fui chamado ao cargo de assessor de Lewandowski após ter defendido meu doutorado, por – prefiro assim acreditar – puro critério técnico. Confessaria que jamais havia dirigido a palavra ao professor que me convocava à assessoria. E teria que dizer, se vale a informação, que qualquer um que perguntasse a respeito, vivida mais de uma década sob as Arcadas, saberia que eu não era correligionário do então Presidente da República, que indicara o Ministro Lewandowski à suprema vaga. Para mim, votar no PT seria um sacrifício ideológico que até hoje não me convenço a fazer.

Quebrado esse compromisso, posso hoje recuperar o que quis, naqueles dias em que lia o ataque ao Ministro, escrever. E as divido em dois pontos: primeiro, informações privadas, de gabinete; e outras de conhecimento público, atingíveis a qualquer um que tenha algum bom senso. De gabinete, posso dizer que, analisando os processos e redigindo minutas de decisões (para isso eu era pago com dinheiro público), jamais recebi uma ordem de meu chefe para olhar algum caso, nominado, com olhos mais atentos, ou para acelerar ou retardar algum andamento específico, ainda quando sobre minha mesa se acumulavam processos originários de homens com força política gigantesca. As ordens foram sempre gerais e, acreditem ou não os biógrafos, o comando que mais me marcou nada tinha que ver com as paradigmáticas ações penais originárias. Lembro bem, já nos meus primeiros dias de posse em cargo de confiança, do conselho de ler com extremada atenção os manuscritos que detentos semi analfabetos enviavam diretamente do presídio à Corte; pedidos autuados nada mais saíam do envelope e transformados em Habeas Corpus, tão urgentes como o do deputado que queria anular escuta telefônica que lhe comprometia. E não foi uma vez apenas que alguma daquelas cartas desesperadas e com trechos ininteligíveis provocaram um alvará de soltura, supremo. Uma ordem como “Leia sempre com atenção esses manuscritos, que terão sempre muitas deficiências quanto a requisitos de um Habeas Corpus ao Supremo Tribunal, mas que foram escritos por alguém em absoluto desespero, que não tem quem fale por ele” é algo que não se esquece facilmente, mas que só deve ser revelada em ocasiões muito especiais.

Também como informação privada posso dizer que assisti ao Ministro entravar fluente conversas em francês ou alemão com autoridades estrangeiras que o visitavam, o que já daria uma pista de que a figura que a mídia lhe queria pintar, de advogado pouco preparado, era algo para ser colocado de imediato em dúvida.

Claro que essas minhas informações, sob sigilo então, poderiam não alcançar a mídia, que talvez não tivesse fontes especializadas tão próximas do dia a dia de gabinete – o que pessoalmente duvido. Entretanto, qualquer pretensão de recriação biográfica daquele Ministro, então alvo de tanta especulação destrutiva, não poderia, creio, deixar de consultar os dados que dele estão disponibilizados a qualquer um que queira trabalhar minimamente com a verdade. Assim convicto, rascunhei algo como a assertiva de que, se observada a biblioteca de qualquer estudioso de Teoria Política – decerto repleta de obras que não figuraram na lista semanal dos mais vendidos –, seriam encontradas publicações proeminentes do Ministro, as quais orientam a muitos que de fato perscrutam a concepção de Estado. E que uma conversa com algum professor universitário – que poderia depor também sobre política acadêmica – revelaria que ocupar a Cátedra que pertenceu a Dalmo Dallari, na Faculdade de Direito da USP, depende de algum estudo e ilustração, e assim estaria dizendo o mínimo. “Sem desmerecer a hipótese de que eu revele um ponto de vista comprometido”, redigi eu à mão em meu caderno de notas “alegar despreparo e mediocridade em um caso desses é uma ofensa à comunidade acadêmica, essa sim que defendo com assumida parcialidade”.

Por sorte, passados os dias mais críticos do julgamento do Mensalão, esses momentos de crítica individual a Lewandowski também se foram. Imagino que a imprensa tenha investigado melhor e caído na conta de que se trata de alguém que tem preparo para lidar com as questões do Estado, muito mais – sem querer criar conflito que os meios de comunicação amariam – que muitos outros seus colegas de magistratura. Em outros termos, o Ministro demonstra que não necessita de ninguém que advogue por sua imagem, que reconstrua sua biografia ou que informe contundentemente os meios de comunicação, já que os fatos falam por si próprios. E tampouco posso dispensar a possibilidade de que a própria imprensa de Brasília, que – para o bem da democracia – tem suas fontes plantadas nos lugares mais inusitados, tenha dado conta de que a logística de caça de alguma irregularidade nas cortes superiores não deve começar por aquele gabinete. Não sei, é apenas uma hipótese de estratégia.

Foi esse o pensamento que me prevaleceu quando desisti de usar o espaço de que eu dispunha então na imprensa para rebater injustas críticas a quem não me havia dado procuração de defensor. Mas não descarto que houvesse algo de inconsciente covardia, de não entrar em polêmica, o que terá sido um erro imperdoável, germe do arrependimento a que me referi. Melhor será ir a outro ponto, e questionar por que a mídia foi tão intolerante com uma voz divergente dentro da Corte, quando sabemos todos que são bem maiores os motivos para suspeitar-se de falta de lisura em julgamento colegiado quando está ausente a divergência.

Acredito que seja esse o ponto a ser investigado, nos novos trabalhos sobre o tema: o que a opinião pública esperava ver? É possível dizer que nossa sociedade ainda não está preparada para compreender a importância da divergência de opinião ou a naturalidade do desarmonia na valoração da prova? Se for real, a assertiva da falta de consolidação da nossa democracia por despreparo da própria opinião pública não é um lugar-comum sem sentido, e merece ser aprofundada, como todo o mensalão deve ser relido, já que qualquer sociedade minimamente séria já preveria que ainda há milhões de linhas a serem escritas na tentativa de interpretar o fato histórico que foi a AP 470.

Fico feliz, passado este tempo, em ver que os prejuízos pessoais àqueles que ousaram, aqui e ali, divergir da maioria da Corte estão sendo minimizados. E o digo em proclamação à liberdade do ministro que por breve tempo assessorei, invocando o aforismo que Voltaire jamais tenha dito, mas que já está no inconsciente coletivo, porque de fato, como mero espectador do julgamento do mensalão, eu não concordava com grande parte da opinião de Lewandowski, mas reconhecia sua propriedade técnica.

Direito penal e a cobertura da imprensa

Sobre o julgamento, a opinião que pode ter um professor de Direito penal, que humildemente tenta compreender a complexidade das diferentes teorias que buscam dar racionalidade à difícil tarefa de selecionar responsáveis pelas ações tachadas de socialmente danosas, não poderia ser diferente. Apenas a título de exemplo, passei eu um par de anos, enquanto tentava escrever uma monografia sobre os Pflichtdelikte, em um aprofundado – ou melhor, algo que dentro de minha capacidade eu julgava intenso – estudo sobre o domínio do fato, desde sua origem, antes de Welzel (em 1915, conforme Roxin, ou 1933, seguindo a Jescheck?) até a oitava edição alemã do Täterschaft und Tatherrschaft. Um esforço enorme de entendimento, ao menos se considerada minha limitação intelectual e de compreensão de idioma estrangeiro, visando à redação uma monografia que até o momento jamais se plasmou, e que talvez nunca tome forma de texto legível, não sei. Fato é que, por conta disso, se não sou um especialista no tema, ao menos ganhei a noção de o quão difícil é aplicar os critérios de autoria e participação que hoje são quase que corporificados na monografia de Claus Roxin, e que decerto não foram – perdoem-me dizê-lo – aproveitados até a raiz pelo julgamento que vivenciamos. E tal falta de compreensão, como naquela brincadeira de telefone sem fio, foi agravada pelo trabalho da mídia, não só com históricos equívocos como a entrevista sugada e recortada do Professor de Munique em um evento carioca, como também pela simplificação inevitável que os meios de comunicação têm de fazer para explicar à opinião pública questões de intrincada composição científica. Nesse dilema, porque é a mídia aqui que mais nos interessa, a equipe de professores das duas Faculdades de Direito da USP fizeram aquele trabalho intenso e muito produtivo de esclarecer temas jurídicos, prejudicado apenas por um único detrator, eu mesmo, ao explicar justo esse tema que eu tinha obrigação moral de lhe dominar as explicações. É que me lembro bem do meu colega Eduardo Saad Diniz, que também colabora para a edição deste presente livro, queixando-se do teor de uma entrevista que concedi, e cujo texto final fez parecer que o tal Tatherrschaft, o domínio do fato, era apenas uma forma de imputação de responsabilidade penal (a partir até da causalidade) ao comandante da organização, em um misto de autoria intelectual e responsabilidade objetiva pela empresa defeituosa. Com minha entrevista, insinuava-me o colega, eu reforçava os estigmas que tentávamos evitar, mas que espero que meus leitores compreendam que não foi minha culpa. Melhor, não era culpa exclusiva minha, porque todos nós enfrentamos o dilema de, a um lado, prestar esclarecimentos à opinião pública, porém dentro do espaço compacto, da ausência de premissas no interlocutor – nosso leitor de jornal, crítico e atento a contradições lógicas – ou, de outro lado, recusar-se à função de esclarecer sua matéria de especialidade. Matéria conduzida pelas contingências a um ponto-chave de informação do momento histórico do País. Para quem se formou à custa do dinheiro público que ainda paga seu salário, essa recusa do esclarecimento parecia-me a pior das opções.

Dentro das possibilidades e, repetindo o vocábulo, das contingências, acredito que a mídia tenha desempenhado um papel satisfatório na cobertura do julgamento, não obstante todas as falhas que são desveladas nas entrevistas objeto desta obra, ou de outras tantas mais. E isso parece que nos coloca diante de um novo problema, porque agora quase coincidentemente vivenciamos também um marco do momento em que ela perde seu monopólio de produção de informação em massa – o que é excelente para a liberdade – mas que traz a consequência de ainda menor critério de aferição da verdade, pela diminuição da relevância da profissão de jornalista, que desce no espiral de sua crise. Se nos queixamos das distorções e do monopólio da notícia pelos jornalistas, talvez à ausência desses profissionais o fluxo de informação possa vir a ser ainda mais deletério, devastador ou injusto. E esse tema, acredito, merece mais algumas linhas.

Diretos antigos e mídia nova

Não exatamente por coincidência, nesse intervalo de tempo havido entre o julgamento de mérito da AP 470 e seus primeiros embargos, o País vivenciou essas surpreendentes passeatas de estudantes, nos dias que avizinhavam a Copa das Confederações. Tenho agora bem claro que, dentre todas as lições que os atuais protestos de rua nos têm trazido, a principal, a que deve ficar para a história, é esse marco inicial da ruína do monopólio da comunicação, em especial das redes de televisão. Devo aqui construir, uma vez mais, um relato [em parte publicado no Observatório da Imprensa (www.teste.observatoriodaimprensa.com.br)], desta vez da vivência de dois momentos históricos afastados pelas décadas que me permite propor essa precipitada análise, propícia a quem queira refletir sobre a influência dos meios de comunicação em nossos rumos.

Porque foi inevitável que minha caminhada pela Paulista em uma noite dessas – tão recente no momento em que aqui escrevo – observando ou acompanhando a multidão de manifestantes bem mais jovens que eu, me reativasse na memória o dia que passei naquela mesma avenida, vinte anos antes, gritando pelo impeachment de Collor. Os “caras-pintadas” daquela tarde tínhamos, bem ao contrário dos rebeldes recentes, um objeto muito formatado, um pedido específico de nosso clamor: que o Presidente renunciasse, ou que o Congresso dele viesse a declarar o impedimento político. Mas o que estava na base daquela mobilização, que nós pouco percebíamos, era bem diverso de o que, nestes poucos dias passados impulsionou nossos estudantes.

Há vinte anos, os jornais noticiavam o escândalo de PC Farias e um outro PC, Pedro Collor, mas eu pouco compreendia daquele contexto. Não por falta apenas de consciência política, mas porque o tempo não me permitia: eu frequentava – ou deveria frequentar – pela manhã um colégio do Estado, e de tarde aproveitava uma bolsa de estudos em um cursinho pré-vestibular. Era para mim impossível usufruir da telenovela dos “Anos Dourados”, cujo protagonista, creio que muito intencionalmente, usava da função empática da ficção para inflar em jovens telespectadores o desejo de enfrentar, como herói dos anos de chumbo, a cavalaria da polícia de choque. Então eu cheguei à escola pela manhã apenas porque provavelmente havia algum evento relevante e me disseram que não haveria aula, o que já então não era raro no ensino público, mas o motivo era desta vez diferenciado, É que hoje tem passeata!, disse o próprio policial gordinho que, a bem da verdade, funcionava ali mais como bedel. Entrei pelos corredores da escola e tudo que havia era um grupo de amigos que às 10h da manhã já promovia a recolha de dinheiro para comprar conhaque barato ou outros semi-alucinógenos que nos fizeram mais rapidamente incorporar ao movimento da massa, e a partir daí, por motivos evidentes, os fatos se esfumam um pouco em meu relato. Lembro que governador tinha dado ordem de liberar as catracas do metrô da Paulista, que salvo engano havia acabado de inaugurar-se, para irmos todos protestar na avenida. Nem diante dessa liberação absoluta da cobrança das passagens – que hoje soa irônica quando comparada a protestos originados do aumento de preço no transporte público – suspeitamos da conveniência política da manifestação; e eu menos ainda, porque lembro de haver perguntado a meu colega se deveria gritar contra ou a favor o tal “PC”, e ele respondeu que tampouco sabia, porque havia dois PCs, aparentemente um do bem e outro do mal, Então é melhor xingar só o Presidente!, definimos enquanto subíamos a avenida da escola ainda em direção à estação. Sobre as provas da corrupção do Presidente, que não deveriam ser poucas, consegui ali apurar que havia boatos fortíssimos de que Collor ou algum agregado havia ganho um Fiat de um empreiteiro, Aonde vai parar esse País!, gritei, e acho que àquele tempo já era sim meio sarcástico. Mas tampouco tinha eu algum interesse em aprofundar-me nesses pormenores, ainda que alguma foto jornalística daquele tempo tenha captado em mim um semblante muito indignado.

A festa de rua foi interessante, e me lembro de só haver entrado em algum confronto verbal com a polícia quando um militar me deu ordem de descer da cobertura do ponto de ônibus sobre o qual eu havia trepado, a que eu contestei que não havia risco de que me machucasse. Passei a tarde na avenida, e só por falta de condições mentais faltei ao cursinho, onde – eu soube no dia seguinte – as aulas não se interromperam mas a audiência fora quase nula. E nosso movimento foi naquela noite ovacionado pelo Jornal Nacional, ausente qualquer voz, ao que me recorde, que se voltasse contra a baderna das ruas, ou que anunciasse a iminência de estado de sítio.

Pisando a avenida, duas décadas mais tarde, não foi difícil pensar que só na aparência esses jovens se aproximam aos de meu tempo. Porque os primeiros gritos que ouvi, no novo movimento, foram contrários à cobertura da imprensa; e os celulares ativos, que filmavam e passavam mensagens constantes, davam mostra de que o espírito coletivo era surgido e alimentado à margem da imprensa monopolizada. A tecnologia é sim o grande diferencial do presente, mas para muito além da facilidade de encontros e agendamentos que as redes sociais propiciam: a juventude de hoje evidencia o que significa nascer desatada de uma fonte única de notícias, e creio que isso não escapa às grandes redes de televisão, que não já não conquistam a simpatia desse público rebelde ainda quando infiltram seus principais artistas nas redes sociais em apoio às passeatas. Para o bem ou para o mal, como os antigos PCs da era Collor, a independência comunicativa me parece ser a grande característica desse movimento.

O momento exato em que termino estes comentários é decisivo no sentido de desvendar a relação principal documentada na obra do acadêmico Gustavo Mascarenhas. A relação entre o novo Judiciário a nova mídia. Um novo Judiciário porque – respeitadas todas as opiniões, pois se observo apenas um dado objetivo – condena os antes penalmente inatingíveis; a nova mídia porque, distante dos monopólios das grandes redes, tem na internet um contraponto difuso, capilarizado e imediato. Nenhum é melhor que outro por si mesmo, porque o novo Judiciário e a nova mídia da internet podem também agir sem a frieza e o vagar necessários.

Os fatos estão-se desenrolando e sobre eles não tenho como arriscar qualquer predição. O único que posso dizer é que a leitura das entrevistas aqui desenvolvidas revela (ou, mais modernamente, imprime) a fotografia de um momento histórico e opiniões relevantes, no calor dos acontecimentos. Daí em diante, cabe a todos nós responder às questões que a leitura insinua, dentre as quais está o preparo da nova mídia e da opinião pública para fazer repercutir sem grandes distorções o julgamento tão portentoso como inovador da AP 470. Apenas arrisco opinar que se tem dado muita atenção aos comentários que a imprensa tradicional oferta sobre o julgamento, quando na verdade a maior repercussão, com a mais operacionalizada força de opinião pode estar nos comentários das redes sociais e nos blogs difusos e pouco controlados.

Frente a tantas mudanças, conhecer a opinião das partes que digladiam nesse julgamento – ou ao menos dos defensores, porque, ao que me consta, a Acusação recusou-se à participação no trabalho do autor – é mais que um exercício intelectual. Faz sim parte do repetido exercício de leitura que temos de praticar para seguir a trajetória de um país em desenvolvimento, que agora terá de desfazer um nó entre os já tradicionais Direitos da Personalidade, Direitos Sociais, Igualdade perante a Lei e Direito à Informação, quando novos valores e compreensões sobre cidadania, direito à defesa, Judiciário e Mídia ainda não se sedimentaram, sequer aos especialistas. Posso garantir que as opiniões colhidas nas páginas que seguem serão determinantes para que o País siga sua trajetória, que, sem tecer adjetivos arriscados, assume caminhos menos conservadores, com atalhos que implicam risco, mas que guardam a curiosa ousadia de um caminho sem volta atrás.

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Víctor Gabriel Rodríguez é professor doutor de Direito Penal da Universidade de São Paulo (FDRP), membro da União Brasileira de Escritores