Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

As leituras dos outros

Agora que vocês já conhecem os livros que marcaram minha infância, apresento-lhes as primeiras seduções literárias de alguns amigos e conhecidos, colhidas e anotadas aqui e ali. Como esperado, Monteiro Lobato deu uma sova nos concorrentes, com cerca de 70% das preferências; percentual que na certa aumentaria se ampliasse o número de consultados.

Clarice Lispector, cujas primeiras leituras foram O Patinho Feio (de Hans Christian Andersen) e A Lâmpada de Aladim (das Mil e Uma Noites), apaixonou-se de tal modo pelas Reinações de Narizinho que fez de uma menina vidrada na mesma história a protagonista do conto “Felicidade Clandestina”. Outra escritora enfeitiçada pelo universo paralelo das Reinações de Narizinho: Ana Maria Machado, que recriou as fantasias de Lobato no sítio dos seus avós, onde passava as férias.

O crítico e romancista Silviano Santiago adorava “o absurdo gostoso e nada convencional” de Emília e do Visconde de Sabugosa, mas achava Dona Benta, Anastácia, Pedrinho e Narizinho enfadonhos. João Ubaldo Ribeiro deleitava-se com todos os personagens de Lobato, sem exclusão dos derivados do imaginário estrangeiro. Se obrigados a selecionar apenas um só título, Caetano Veloso, Antonio Cícero e Macalé ficariam com A Chave do Tamanho. “Li outros dele com interesse”, acrescenta Caetano, “mas a ideia de mudar tudo no mundo só mudando o tamanho das pessoas era poderosa. E Emília dar um pontapé na bunda do Hitler acrescentava um sabor estranho de reportagem àquela história fantástica.”

Nelson Motta também destaca A Chave do Tamanho, assim como As Reinações de Narizinho e Caçadas do Pedrinho, mas, a exemplo do publicitário Washington Olivetto, seu xodó era Os 12 Trabalhos de Hércules, acesso de não sei quantas gerações de brasileiros ao universo maravilhoso da mitologia grega.

Fascínio das imagens

E Monteiro Lobato, que leituras o deslumbraram quando menino? Os habituais suspeitos do final do século 19: os fabulistas clássicos (Esopo, La Fontaine), os irmãos Grimm, Lewis Carroll, L. Frank Baum (O Mágico de Oz) e Wilhelm Busch (Juca e Xico). O mago de Taubaté teve, portanto, os melhores mestres da categoria.

Rubem Fonseca, que estranhamente (o advérbio é dele) nunca leu Lobato nem qualquer outro autor de ficção dita infantil, descobriu o prazer da leitura “com escritores de quinta categoria”: Michel Zevaco, Ponson Du Terrail, Rafael Sabatini, H. Rider Haggard, Emilio Salgari, James Fenimore Cooper, Karl May, cujas narrativas aventurescas alcançaram até a minha geração, uns mais outros menos. O best seller alemão Karl May, por exemplo, nunca li, só na tela acompanhei, desinteressado, a saga do cacique apache Winnetou.

Talvez mais estranho do que eu não ter lido Karl May (200 milhões de exemplares vendidos no mundo inteiro) foi Millôr Fernandes ter-se ligado, ali por volta dos 15 anos, a uma obra de Coelho Neto. Até então, consumira somente aquelas noveletas em fascículos (Fausta Vencida, A Córsega em Chamas) que a editora Vecchi deixava na porta de sua casa, no subúrbio carioca do Méier. Coelho Neto foi uma revelação e um suadouro lexical. Para acompanhar a viagem no tempo do protagonista de Imortalidade, Millôr tomou um chá de dicionário. Ao reler o livro, muitos anos depois, achou-o “uma solene babaquice”.

Certamente mais estranho do que um adolescente dos anos 1930 embrenhar-se pela palavrosa prosa de Coelho Neto, se bem que a serviço de uma história fascinante (provavelmente chupada de Rip Van Winkle, de Washington Irving, publicado um século antes), é um garoto da década de 1970 grudar na áspera narrativa de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, como fez o hoje cronista e romancista Arthur Dapieve. Obviamente por motivos extraliterários. Sucumbiu à morte da Baleia, uma das passagens mais traumatizantes da literatura brasileira, sobretudo para quem adora animais. Já grandinho, Dapieve sucumbiu ao resto.

Ainda mais estranho do que ver o Velho Graça suplantando Lobato, Verne e outros totens da literatura infantil é saber que o livro que mais impressionou o jornalista e escritor Sérgio Rodrigues, quando ainda usava calças curtas, foi A Divina Comédia. Rodrigues não foi um leitor precoce de Dante; deixou-se imantar unicamente pelas ilustrações de Gustave Doré e sua visão do Inferno, que lhe provocavam “medo e excitação”. Nunca vira coisas tão “sombrias, torturadas e – de um modo pervertido, claro – tão sexy”.

Leitura escondida

O primeiro livro infantil, por assim dizer, de Milton Hatoum foi a voz de seu avô libanês, “um narrador que contava histórias mirabolantes aos curumins de Manaus sem TV”, proeza da oralidade que o neto homenagearia no conto “O Adeus do Comandante”. Antes do primeiro arroubo literário, Hatoum devorou os “catecismos” pornôs de Carlos Zéfiro e os bem-comportados bangue-bangues do Cavaleiro Negro, do Cavaleiro Fantasma, do Zorro e outros caubóis dos quadrinhos. Finalmente aos 12 anos, a iniciação inesquecível: as obras completas de Machado de Assis, “naquela edição maravilhosa, com letras enormes, capa dura, azul”. Começou pelo conto “A Parasita Azul”, “e o feitiço nunca mais acabou”.

Outros livros dessa infância que findava: a coleção do Tesouro da Juventude e o livro de cabeceira de nove entre dez crianças do mundo inteiro, A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson. Este ele lia em casa e nas aulas da professora Jane Hern, bela ruiva inglesa que o marcou para sempre, até mais que a busca ao tesouro empreendida pelo capitão Flint, ao menos é o que se deduz de “Lições de Uma Inglesa”, crônica publicada neste caderno há dois anos e incluída na coletânea Um Solitário à Espreita, recém-editada pela Companhia das Letras.

O roqueiro Lulu Santos passou batido por Lobato. O livro que mais o marcou na infância foi O Casamento, de Nelson Rodrigues. Justamente por estar no índex da casa, o leu escondido no banheiro, quando tinha 11 anos. E com tal sofreguidão e pavor, que o deixou cair dentro da banheira cheia d’água.

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Sérgio Augusto é colunista do Estado de S.Paulo