A capacidade de contar uma boa história é uma das habilidades mais antigas. Todos admiram aquelas pessoas fascinantes, capazes de envolver plateias, festas e salas de aula quando relatam um fato, uma anedota ou uma conquista épica. Boa parte dos valores e regras que compõem a vida em sociedade é composta de histórias, que na forma de mitos, lendas, costumes ou folclore, são transmitidas através das gerações.
Quem conta um conto, diz a frase cujo autor foi perdido no tempo, aumenta um ponto. Da mesma forma que não se conhece o inventor da primeira omelete, muitas das histórias conhecidas chegaram até seus ouvintes através de interpretações diversas, complementares, não necessariamente melhores. Ficam os narradores, seguem as narrativas. O essencial passa de geração em geração, mesmo que não seja bem contado. Não é preciso ver a ópera Carmen para sentir ciúme, nem ler Macbeth para entender o remorso.
As grandes histórias épicas do passado são conjuntos de narrativas costuradas por um compilador muitas vezes anônimo. Seus autores originais foram perdidos no tempo, deixando para a posteridade somente a moral da história. No ocidente a tradição vem desde o Épico de Gilgamesh, que por sua vez inspirou Homero a contar a Ilíada e a Odisseia. Suas narrativas deixam claro seu talento como narrador, que como a Xerazade de Mil e Uma Noites, não é autor de cada peça, mas criador da fina e resistente linha de raciocínio que as emenda.
A mesma tradição se perpetua nos grandes livros religiosos como a Bíblia, o Pentateuco e o Alcorão, que de vez em quando sofrem o escrutínio de algum acadêmico desocupado ou autor de best-sellers religiosos em busca de “segredos” escondidos em suas narrativas e parábolas ou de pistas a respeito de seus possíveis autores. Mesmo que tais autores fossem encontrados, o resultado teria pouco significado prático, uma vez que eles teriam como fontes de influência e referência outros tantos desconhecidos, cada um sujeito a variados erros de interpretação.
Novos rituais
Ao redor do mundo, os encontros de Siddhartha Gautama, os Anacletos de Confúcio, os provérbios do Tao Te Ching, os Vedas e Upanixades Hinduístas, os rituais Xamânicos, as concepções de Zoroastro, os mitos – dos gregos aos povos indígenas do Xingu – e as histórias dos Orixás tem em comum a ausência de um autor, inventor de personagens e cenários. O máximo que há é um trovador, um contador de histórias, que, como Camões nos Lusíadas, buscava “Cantando espalhar por toda parte se a tanto me ajudar o engenho e arte”.
Até mesmo a ciência, a mais racional das narrativas, evita a figura do autor. O máximo que há são descobridores, proponentes, desbravadores. Todos eles partindo da premissa de um de seus maiores expoentes, Isaac Newton, que mesmo tendo inventado o Cálculo (duas vezes) e proposto algumas das maiores teorias da Física, dizia que só foi capaz de ver mais longe por estar em pé sobre os ombros de gigantes.
Até o Iluminismo, a narrativa era considerada um talento pessoal. Atividade corriqueira, que tomava emprestada fatos da vida real para costurá-los de forma intrigante, ela era tão importante quanto a música ou a culinária. Ninguém se importava com a autoria –ou mesmo a veracidade– dos fatos, contanto que sua interpretação fosse satisfatória. “Se non è vero, è ben trovato”, já diziam os italianos, mostrando que verdade e verossimilhança caminham próximas.
A revolução promovida pela imprensa de tipos móveis criou a indústria editorial, que, para ter retorno sobre seus pesados investimentos em impressão e distribuição, precisava moralizar essa promiscuidade autoral. Se todos contam histórias, vender livros seria tão infrutífero quanto ensinar a fritar ovos. Durante muito tempo ela esteve restrita à religião, burocracia, publicações científicas, grandes narrativas e autores consagrados. Com a urbanização crescente e a fragmentação dos núcleos familiares, as histórias começaram a rarear, migrando aos poucos para os livros, para a música (que passa a ter letra), para o cinema e para a televisão.
Hoje, curiosamente, a situação parece se reverter. O excesso de informação promovido pela Internet e Redes Sociais faz com que narradores de todos os tipos apareçam o tempo todo. De mestres de RPG a ninjas de videogames, de blogueiros a celebridades no Twitter, Facebook e YouTube, novos autores propõem, compilam e remixam histórias de múltiplas fontes. Há nelas, como havia em Shakespeare, Cervantes e Goethe, muito de reciclado e um pouco de autobiográfico. Como acontece com bons músicos e cozinheiros, não se demanda dos novos autores que inventem todos os componentes de sua história, mas que sejam capazes de criar, através de sua colagem particular, narrativas inéditas, transmídia e interativas.
O mundo digital cria novos rituais para se contar as mesmas boas e velhas histórias, livres da ditadura do autor e sujeitas a múltiplas interpretações e intervenções. Se parece inovador, sugiro a leitura do I Ching.
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Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP e consultor em inovação digital; autor do livro Enciclopédia da Nuvem, em que analisa 550 ferramentas e serviços digitais para empresas. Mantém o blog www.luli.com.br