Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O papel do rock

Às 11h30, o primeiro baseado, “do tamanho de uma pequena canoa”. Depois, uma ou duas cervejas no almoço. E, a partir das 18h, as apostas estavam abertas.

Esta era a rotina –pelo menos nos dias calmos– na Redação de uma das principais publicações de música do mundo: o semanário inglês “New Musical Express”. Isso nos anos 70, para muitos o auge do “NME”.

Bastidores cheios de histórias saborosas, além de uma análise sólida da indústria da música e do jornalismo musical no século 20, compõem um dos melhores livros que li neste ano (com certeza o mais cativante): “The History of the NME”, de Pat Long.

“New Musical Express” é sinônimo de paixão e polêmica. Foi criado em Londres em 1946, como uma publicação voltada para músicos. Com o surgimento do rock and roll, voltou-se aos fãs adolescentes do novo ritmo.

Mas, a partir dos anos 60, os Beatles sofisticaram letras e arranjos. Bob Dylan mesclava guitarras, folk e literatura. De uma hora para outra, era preciso conhecer Rimbaud e hinduísmo para falar de rock.

Assim, na virada das décadas 60/70, a direção do “NME” avaliou que era o momento de pisar fundo em uma visão mais intelectualizada –mas sem pompa– da música jovem. Em 1972, o semanário foi em busca de gás e sangue novo, trazendo jovens jornalistas de fanzines e da imprensa underground.

Cacos de vidro

Um trio de guerrilheiros literatos ocupava a linha de frente, nomes que até hoje provocam reverência em certos círculos: Charles Shaar Murray, Ian MacDonald e o notório Nick Kent.

Este último, junkie autodestrutivo, rock and roller frustrado que trocou as guitarras pelos livros e a máquina de escrever, foi símbolo de uma época. A do estrelato por proximidade, do jornalista tão louco e estiloso quanto os roqueiros sobre quem escrevia.

Magérrimo, sem rédeas (“eu me comportava como Oscar Wilde”), Kent não se encaixava nas restrições de um trabalho corporativo. De todos os que emigraram da imprensa alternativa para o “NME”, ele foi o único a recusar emprego fixo: atuou sempre como freelancer. Se seus textos brilhantes chegariam ou não a tempo, eis a incerteza que torturava os editores.

Charles Shaar Murray, hippie radical, fez nome com críticas destruidoras. Quando o músico e produtor Lee Hazlewood lançou o álbum “Poet, Fool or Bum” (“poeta, tolo ou vagabundo”), a resenha de Murray resumiu-se a uma palavra: “Vagabundo”.

MacDonald, mesmo em um ambiente extravagante como a Redação do “NME”, se destacava pelo comportamento anárquico. Sua especialidade, como editor-assistente, era escolher as fotos mais ridículas de celebridades, sapecando legendas maldosas.

Autor do estudo mais completo já feito sobre os Beatles, o livro “Revolution in the Head”, e obcecado pelo compositor clássico Dmitri Shostakovich, Ian MacDonald se suicidou em 2003. Os obituários destacavam a inexistência de relacionamentos amorosos em 54 anos de vida.

MacDonald, Murray e Kent marcaram época, mas já na segunda metade dos anos 70 seu estrelato seria abalado. Era o terremoto punk. Os três, hippies de 20 e poucos anos, de repente pareciam velhos e desatualizados. Desesperadamente “uncool”, pecado mortal no “NME”.

Urgente: procurar gente ainda mais jovem, em sintonia com a nova fúria do rock. Publicou-se um anúncio escrito pelo próprio Murray, buscando “hip young gunslingers” (numa tradução não muito inspirada, “pistoleiros jovens e descolados”).

Entre 1.200 candidatos, dois foram escolhidos: Tony Parsons e Julie Burchill. Parsons tinha 22 anos. A idade de Julie era um acinte: 17.

Uma vez instalados na Redação, transformaram em um inferno a vida da geração anterior. Vizinhos de mesa, Julie e Tony cercaram seu espaço com arame e cacos de vidro. Na parede, picharam: “Morte aos hippies”.

Velocidade supersônica

Um dia, Murray teve um ataque de nervos. Tentava abandonar a dependência de anfetaminas e não estava bem. Parsons devolveu: “Vovô, se você não consegue lidar com suas drogas, não venha descontar na gente”. Murray, o “vovô”, tinha 25 anos.

Destaquei o período que mais me interessa, mas o livro mostra que a história do “NME” prosseguiu e prossegue. Criando e destruindo hypes em velocidade supersônica, pautando a imprensa musical de todos os continentes. Sobrevivendo no papel em meio ao bombardeio on-line.

“The History of the NME.” Nerds de todo o mundo, uni-vos. Este livro é para vocês.

******

Álvaro Pereira Júnior, colunista da Folha de S.Paulo