Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Euclides, enfim, tem a sua autora

Hoje parece inacreditável, mas eu estava na terceira série do primário quando o professor de português indicou a leitura de Os Sertões. Recomendou que pulássemos os capítulos iniciais (“A Terra” e “O Homem”) e fossemos à parte que considerava mais apetitosa: “A Luta”. Não segui o conselho. E me dei bem: fiquei fascinado pela descrição geográfica feita com o saber técnico do engenheiro Euclides da Cunha, combinado com o mediúnico talento do escritor, clássico a cada frase.

Não entendi tudo – nem mesmo a maior parte à primeira leitura. Mas já tinha o hábito do dicionário, adquirido quando, aos cinco anos, penetrei na biblioteca do meu pai e dei de cara com a versão em formato grande do Lello Universal. Foi paixão à primeira vista. Depois de avançar febril pelas páginas iniciais de Os Sertões, voltei para captar o sentido daquelas palavras estranhas, sonoras e retumbantes, cheias de um simbolismo raro, que ía da cabeça de um engenheiro para a alma de um prosador épico, como raros na literatura universal. O Lello foi mais apropriado do que os compêndios nacionais dada a fraseologia euclidiana.

Quando tive acesso aos escritos amazônicos e à correspondência completa de Euclides, primeiro pela Aguilar e, depois, pela editora da USP, uma ideia passou a martelar o meu cérebro: seguir os rastros interrompidos pelo assassinato e recriar o caminho que Euclides seguiria até sua ópera máxima, algo como As Selvas, parafraseando Os Sertões. Faltou-me tempo, aplicação e competência para realizar a tarefa.

Certamente ela está além da minha capacidade. Mas se não pude acompanhar a trajetória imaginária de Euclides pela última página do Genesis, delegada por Deus aos homens, agora posso desfrutar do prazer de ler a obra com a qual sonhei durante os últimos e muitos anos. Susanna Hecht a escreveu e a editora da Universidade de Chicago acaba de publicá-la. É The scramble for the Amazon and The Lost Paradise of Euclides da Cunha (algo como “O Avanço sobre a Amazônia e o Paraíso Perdido de Euclides da Cunha”), belíssimo volume de 612 paginas.

Tributo à inteligência

Quando conheci pessoalmente Susana, em Gainesville, na Flórida, em 1982, já a acompanhava por leitura e me admirava do trabalho dela como pesquisadora. Numa época em que pouca gente enfrentava as frentes pioneiras que se abriam pelo interior amazônico, ela ia conferir os fatos, observar o cenário, ouvir os atores do drama (depois, muitas vezes, tragédia) e produzir profusamente papers de grande rigor científico. Pesquisar sobre formação e degradação de pastagens nas fazendas que eram formadas com dinheiro dos incentivos fiscais e provocando conflitos pela posse de terra exigia, além de acuidade, coragem para o contato direto com a realidade. Esses atributos nunca faltaram a Susanna.

Ela já acumulara uma experiência única quando escreveu com o marido, Alexander Cockburn (recentemente falecido), The Fate of the Forest: Developers, Destroyers, and Defenders of the Amazon (“O Destino da Floresta: Desenvolvimentistas, Destruidores e Defensores da Amazônia”, numa tradução literal que ignora o sentido mitológico de fate, mais sugestivo de significado). O livro sobre Euclides se harmoniza com o anterior.

É sintomático do falso interesse nacional pela Amazônia que nenhum dos dois livros tenha sido traduzido até agora. Ainda é tempo para fazer isso logo com o Scramble, lançado em maio. Mas para The Fate o retardo é acusador. A Amazônia e o Brasil precisam de produtos intelectuais como esse, de sólida base documental (vivencial e experimental), desenvolvida por uma mente perceptiva, criativa e refinada.

Vou ler atentamente o último livro de Susanna para poder escrever sobre ele. Mas quero logo partilhar com meu leitor o parágrafo que ela me dedicou. Embora exagerado pela generosidade e amizade da autora, e sendo mais um prognóstico do que exatamente uma constatação, muito me honra e anima a ser o que ela me atribui.

Disse Susanna na dedicatória impressa:

“Houve também solidariedade por esse projeto pelo mais importante herdeiro de Euclides na Amazônia: Lúcio Flávio Pinto, jornalista amazônico na mais radical e combativa tradição, filho da terra e seu amante. A região não tem um defensor mais poderoso. Como Euclides, ele nasceu para ser o “Jeremias do seu tempo”. Ele foi um infatigável estimulador deste trabalho e um extraordinário amigo ao longo dos anos”.

Claro que não sou tudo isso, nem parte minúscula disso. Mas vale a pena tentar ser, não é mesmo? Alguém precisa ser na Amazônia dos nossos dias, que tanto deve à inteligência e à obra de Susanna B. Hecht pelos seus 30 anos de dedicação à Amazônia e às Américas.

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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)