No duplo papel de empresário e líder espiritual de uma igreja, Edir Macedo é um estranho no ninho no mundo da comunicação. O segundo volume de sua biografia, recém-lançada, ainda que projetada a apresentá-lo como uma vítima de inimigos ferozes, joga alguma luz sobre o lugar ambíguo que a Record, sob seu comando, ocupa hoje no mercado.
Escrito em parceria com o vice-presidente de jornalismo da emissora, Douglas Tavolaro, “Nada a Perder” está dividido em três volumes. No primeiro, lançado em 2012, Macedo descreve com autopiedade a sua formação religiosa, até “o encontro” com Deus.
Nas páginas que antecedem esse relato longo e cansativo, o autor dedica-se a delinear, com contundência, o grande inimigo: “O clero romano mandava e desmandava no Brasil”. Sobre a sua prisão, em 1992, sob acusação de charlatanismo, curandeirismo e estelionato, escreve: “Nunca aceitei a ideia de que a Justiça brasileira seria influenciada pelas vontades do Vaticano ou pela pressão da imprensa manipulada por eles”.
A conexão entre o que parecem ser as duas missões de Macedo –levar a voz de Deus aos fieis e combater os que querem calá-lo – fica mais clara no segundo volume. Apesar da evocação algo mística estampada na capa, “Meus Desafios Diante do Impossível”, o subtítulo faz alusão à compra da Record, por US$ 45 milhões, em 1989.
Ainda que descreva o negócio como “uma provação”, vencida depois de percorrer um “doloroso caminho”, Macedo desce a alguns pormenores menos edificantes, como o reconhecimento de que usou um testa de ferro na primeira etapa das negociações.
Tema delicado
Por que comprar a Record? “Era um projeto idealizado para conquistar almas”, escreve. Em outro trecho, falando da sua briga com representantes do espiritismo, Macedo é explícito ao afirmar que entende a TV comercial como uma ferramenta de luta e conversão de almas. “A Rede Record ainda não era nossa para denunciar tamanha depravação.”
Como se sabe, depois de adquirida, a emissora foi usada um sem-número de vezes como arma para ataques, travestidos de programas jornalísticos, a grupos religiosos rivais e a jornalistas que questionaram práticas da Igreja Universal.
Se no primeiro volume a mídia era apenas um instrumento do Vaticano, neste segundo ela alcança alguma autonomia no combate a Macedo. “A compra da Record atingiu em cheio os barões da mídia, intocáveis e superpoderosos, acostumados a uma ascendência promíscua em distintas esferas do poder.”
Aparentemente sem se dar conta da contradição, Macedo revela que ofereceu o apoio da Record a Fernando Collor em troca do direito de fazer uma oração na posse do presidente, em 1990. A aproximação não prosperou, segundo ele, porque Collor “ignorou” o pedido.
Macedo não trata da sua ascendência junto ao governo Lula e não inclui, entre as dezenas de fotos do livro, a imagem que o mostra no beija-mão da presidente Dilma no dia da posse, em 2011.
O autor também evita, infelizmente, um tema delicado. Como reuniu, 12 anos depois de fundar a Igreja Universal, o capital necessário para a compra da Record? “Até hoje não sei como conseguimos. Não foi por caminhos semelhantes ao de qualquer negócio comum. Não houve cálculos detalhados nem estudos financeiros. Simplesmente, agi pela fé.”
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Mauricio Stycer, da Folha de S.Paulo