Na noite do dia 21 de novembro de 2012, o escritor Luis Fernando Verissimo foi internado no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. O mal-estar, que parecia ser provocado por uma gripe, se revelou algo bem mais sério. Foram 24 dias até a alta, em dezembro. E Verissimo só voltou a escrever suas colunas para o Globo em janeiro deste ano. Logo no primeiro texto, “Desmoronamento”, ele falou sobre o assunto: a morte aparecera como uma viagem em um elevador de loja de departamentos. Em cada parada, em vez do ascensorista anunciar “Lingerie” ou “Adereços femininos”, dizia “Desce aqui e salva tua alma” e “Pense no que poderia ter sido”. No final, o prédio de lata do seu sonho não desmoronou sobre o seu corpo espatifado no chão e o escritor voltou para casa.
Passados 10 meses, o escritor lança o primeiro livro após o susto, Os últimos quartetos de Beethoven e outros contos (Objetiva), uma coletânea que traz 10 textos de ficção, sendo quatro inéditos, entre eles o que dá nome à obra. Os outros seis foram escolhidos a partir de sua produção para os jornais, como o próprio Globo e O Estado de S. Paulo. A morte aparece explicitamente em dois textos: “Memória” e no inédito “A mulher que caiu do céu”.
No primeiro, um homem à beira de um ataque cardíaco consegue lembrar a receita de um martini perfeito, de um antigo goleiro do Botafogo, mas não onde deixou os remédios. Curiosamente, o texto é o mais antigo de todos e o autor nem se lembra onde foi publicado originalmente. Já no segundo, a morte é uma mulher que não consegue cumprir a sua missão de matar o protagonista José Roberto ao sentir uma profunda empatia por ele e sua família.
Mãe adotiva
Em entrevista respondida por e-mail, de Porto Alegre, dois dias antes de completar 77 anos, na quinta-feira, Verissimo conta que não notou uma influência da internação nos textos do livro, até porque muitos já estavam escritos. A maior mudança, talvez, tenha sido na sua própria vida. “Sou cardíaco, mas a internação foi por outro motivo, uma solerte bactéria que atacou os rins e quase me matou. O susto não teve nenhum efeito, que eu notasse, nos textos do livro, e alguns já estavam escritos, eram pré-susto. O efeito do susto na minha vida foi o de diminuir a certeza de ser imortal, que todo mundo tem um pouco. Foi isso, passei a me sentir um pouco mais mortal”, diz o escritor gaúcho.
Os quatro inéditos têm em comum o protagonismo da relação entre homem e mulher. Em “Os últimos quartetos de Beethoven”, a vida de cinco garotos gira em torno da enigmática e encantadora Livia, a primeira da turma a fumar maconha, a fazer tatuagem, a usar brinco numa orelha só e, de quebra, ainda tocava violoncelo – a música é um tema caro ao autor, que toca saxofone e é integrante do grupo Jazz 6. “Livia era Livia, as divindades não precisam contar os detalhes banais da sua existência”, escreve.
Já em “Lo” o menino Zé Maria, rebatizado de “José José”, se envolve em um tórrido romance incestuoso com sua mãe adotiva, uma nobre europeia decadente, Dolores Fuertes y Obregon. Os dois cruzam vários países da Europa numa fuga até que uma tragédia provoca a separação. A história do casal é uma referência aberta a “Lolita”, de Nabokov, só que com sinal invertido.
Duas homenagens
No caso de “O pôster”, João e Maria formam um casal que chega aos 30 anos e vive a apreensão de receber André, o chefe de João, para jantar. Tudo indica que a visita é um teste para uma possível promoção. Antes da chegada, João decide retirar o pôster de Che Guevara pendurado na parede da sala, esconder o seu exemplar do clássico Veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, e só não consegue arrumar um lugar para os livros da mesa de centro, sobre Picasso e Francis Bacon. “Um comunista e um veado. E se ele examinar os nossos CDs? Muita Mercedes Sosa”, ironiza Maria. Depois, o interesse do chefe por João se revelará um tanto ambíguo.
Verissimo afirma que várias pessoas já apontaram a recorrência do tema em seus trabalhos, como na série “Comédias da vida privada”, mas ele não sabe apontar uma razão clara. “Já me chamaram a atenção para o fato de escrever muito sobre casais, e casais se desfazendo. Não é a minha experiência pessoal, estou casado há 50 anos com a mesma mulher. Talvez seja por isso mesmo que a eterna guerra entre essas duas nações, a masculina e a feminina, me atraia tanto, como um observador não combatente.”
Para o escritor, o que une as ficções da coletânea é a sua diversidade. “O que liga os dez textos é justamente a variedade, de tamanho e enfoque. Há coisas humorísticas e coisas mais sérias, ou pelo menos mais pretensiosas, e a ideia era essa mesmo. Mas os textos já publicados na imprensa e reaproveitados foram selecionados pela editora, o que significa que o fio não foi só eu que dei. Uma reincidência que pode ser citada é das duas homenagens a Nabokov, no conto ‘O expert’ e no ‘Lo’, que é um anti-Lolita”, aponta o autor.
Observador atento
O livro também traz um conto escrito para a coletânea “Vozes do golpe”, publicada pela Companhia das Letras em 2004, com trabalhos do autor e também de Carlos Heitor Cony, Moacyr Scliar e Zuenir Ventura. “A mancha” conta a história de Rogério, um militante de esquerda que foi preso e torturado durante a ditadura militar, mas que, após um período no exílio, fica rico comprando e vendendo imóveis e terrenos. Sua vida caminha em direção aos paraísos artificiais dos condomínios fechados contemporâneos quando ele reencontra o imóvel onde acredita que foi mantido em cativeiro. E a experiência traumática retorna com todas as suas contradições com o presente.
Perguntado se quando começa a escrever já sabe se sairá um conto ou uma crônica, Verissimo elaborou uma tese simples para delimitar a fronteira entre os gêneros depois do trabalho pronto: a extensão. No caso dos textos para os jornais, ele explica que já sabe o tamanho de antemão e aí a dúvida é só se escreverá ficção ou não. “A velha questão sobre o que é exatamente crônica e quando ela deixa de ser crônica e vira conto pode ser resolvida, talvez simplisticamente, com uma regra: como crônica muitas vezes também é ficção, o que a diferencia de um conto é o tamanho. Passou de um certo tamanho, é conto. Deixa de ser um veleiro e se transforma num navio e, no caso do romance, num transatlântico. No livro há textos curtos e longos, alguns escritos para o livro e outros já publicados. Mas é tudo ficção. Assim as crônicas, apesar do tamanho, foram promovidas a contos, pela companhia. É claro que quando começo a escrever uma crônica para o jornal sei que tamanho ela vai ter, para caber no espaço. Só preciso decidir se vai ser ficção ou não”, argumenta ele.
Apesar de não estar presente no livro, o futebol, outra de suas grandes paixões, também teve vez na conversa. Verissimo integrou a cobertura das últimas três Copas do Mundo com o Globo e participou de uma entrevista exclusiva com Ronaldinho Gaúcho, em 2006, quando o craque estava no auge. O escritor continua um observador atento da seleção brasileira e tem a sua explicação para a demora do time em engrenar: o excesso de trocas de comando da equipe. “É curioso como se experimenta técnicos radicalmente diferentes para treinar a seleção, para ver qual é o estilo que funciona. Dunga foi tentado como um exemplo de dedicação pessoal, o Mano Menezes como um pensador moderado e agora o Felipão como um empolgador sem sofisticação… Como os jogadores convocados para as últimas seleções têm sido mais ou menos os mesmos, não me admira que ainda não tenham firmado um jeito de jogar. São como um elenco que recebe um script diferente de cada novo diretor. Mas o Felipão já ganhou com seu estilo ‘Vamos lá!’ Talvez dê certo outra vez”, resume Verissimo.
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Leonardo Cazes, de O Globo