Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Um ‘Kaiserpanorama’ do jornalismo para leitores contemporâneos

“O tempo deste livro é o passado”, deixa claro Jeana Laura da Cunha Santos nas considerações finais do seu texto. O colecionador de histórias miúdas: Machado de Assis e o jornal é desses livros para ser lido de uma vez, em um único fôlego, para depois permanecer na memória, em meio a ideias em suspenso. Ancorado no passado, não poderia ser mais atual: acompanha o decano dos escritores brasileiros no Rio de Janeiro fin-de-siècle, entre os cronistas pioneiros “que faziam a seu modo uma antropologia da cidade”, espaço urbano em permanente mutação.

Para apresentar a prática pioneira de Machado de Assis como cronista e interpretar a sua experiência com o jornal, Jeana recorre ao filósofo alemão Walter Benjamin, que no ensaio ”A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” aborda a sensibilidade das massas naquele período em que a “aura” do livro, consumido de modo particular, é ameaçada pelo jornal, de consumo coletivo. Como escritor, Machado vivenciou o período de transição nas últimas décadas do século 19, “com a crescente ampliação da imprensa, que colocou à disposição dos leitores novos órgãos políticos, religiosos, científicos, profissionais e locais”, quando “grande parte dos leitores – no princípio esporadicamente – começou a escrever” (Benjamin, 2012, p. 70).

Em Machado de Assis as crônicas expressam esse novo momento da leitura coletiva do jornal e também das intervenções de técnicas e inventos no cotidiano da cidade e das pessoas do Rio de Janeiro. Em 16 de outubro de 1892, na revista A Semana, o escritor cronista registrava:

“Anteontem, indo pela Praia da Lapa, em um bond comum, encontrei um dos elétricos, que descia. Era o primeiro que estes meus olhos viam andar. Para não mentir, direi que o que me impressionou, antes da eletricidade, foi o gesto do cocheiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no meu bond, com um grande ar de superioridade. Posto que fosse feio, não eram as prendas físicas que lhe davam aquele aspecto. Sentia-se nele a convicção de que inventara, não só o bond elétrico, mas a própria eletricidade. Não é meu oficio censurar essas meias glórias, ou glórias de empréstimo, como lhe queiram chamar espíritos vadios. As glórias de empréstimo, se não valem tanto como as de plena propriedade, merecem sempre algumas mostras de simpatia. Para que arrancar um homem a essa agradável sensação? Que tenho para lhe dar em troca?” (Machado de Assis, Obra Completa, vol. III, p. 550-551).

Melindrosos, impacientes

É também no olhar de quem viu “pioneiramente o tempo industrial que se anunciava”, na passagem do livro (a casa) para o jornal (a rua), que este livro está centrado. E o faz de modo inteligente, desprovido de certezas e aberto a interpretações. Assim como as crônicas nos jornais, permite ao leitor que encaixe no texto suas próprias leituras e experiências, seja com o jornalismo ou com a cidade, porque não há como ignorar o ambiente que configura as crônicas.

O colecionador de histórias miúdas: Machado de Assis e o jornal é o instantâneo de um momento (final do século 19), de uma atividade (o jornalista cronista) e de uma cidade (Rio de Janeiro, capital do país). Como tal, o livro dá pistas a respeito do vínculo das mídias atuais (a comunitária e as sociais, por exemplo) com a “concepção benjaminiana” da imprensa como palco onde o indivíduo pode se tornar produtor. Também ilumina comparações entre o jornalista flanêur do século 19 e o jornalista multifunção contemporâneo.

Assim, ao buscar pelo “tempo limiar” do jornal no Brasil e encontrá-lo nas crônicas de Machado de Assis, Jeana Santos mostra um país em busca da modernidade em meio aos novos fluxos da informação, com a fotografia e o cinema completando as novas técnicas que rompem com a ordem cronológica e a leitura linear de texto (livro) e imagem (pintura). Jornalista que dedicou a sua pós-graduação (mestrado e doutorado) à literatura, a autora conduz os leitores por um trajeto que só é possível ser traçado por alguém com a sua formação. E, como no caso da crônica, por não ter pretensão de história, este livro tão bem escrito se transforma em experiência e memória involuntária. Uma leitura indispensável para aqueles que desejam conhecer um pouco mais do Brasil, da atividade jornalística e, principalmente, da atualidade de um escritor que deixou o jornalismo influenciar a sua escrita literária sem drama ou constrangimento.

Como escreve o próprio Machado de Assis, “os acontecimentos parecem-se com os homens. São melindrosos, ambiciosos, impacientes, o mais pífio quer aparecer antes do mais idóneo, atropelam tudo, sem justiça nem modéstia…”.

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[do release da editora]

Este livro proporciona um encontro entre o jornalismo do passado e a complexidade contemporânea. Desvenda as sensações dos cronistas-flâneurs do final do século 19, arautos do jornalista moderno, em sua busca pelas notícias nas ruas e becos cariocas onde elas aconteciam, espelhando-as com essa entrada do século 21, quando as pessoas refugiam-se no interior de suas casas e recebem as informações pelas redes de comunicação eletrônicas sentadas em suas poltronas entre quatro paredes. O primeiro tempo é o da reinvenção da literatura, da crônica, da inauguração do jornal e do jornalista imerso na cidade, e o segundo, o da retirada para o abrigo, da informação no tempo real e do acúmulo de funções e de dispositivos, do profissional multimídia.

Num tempo em que muitos veem no livro eletrônico um verdugo para o impresso, outrora também se viu no jornal o algoz deste mesmo livro. Como poderia um objeto de uso particular competir com o consumo coletivo do jornal? Uma transição vivenciada no final do século 21 e retratada por Machado de Assis e João do Rio em suas crônicas. Um momento em que o jornal, a fotografia e o cinema rompem com a leitura linear do texto (livro) e da imagem (pintura) e que nos permite comparar o cronista que flanava pelo Rio de Janeiro de então e o jornalista multimídia atual. 

Com um texto escorreito e atraente, Jeana Laura da Cunha Santos ainda dá asas à nossa imaginação para que mergulhemos num saudoso Rio de Janeiro ”dos dândis, dos boêmios e dos flâneurs, tipos importados da vida parisiense que inspirava a belle époque tropical no seu footing diário pelas vielas cariocas”. Antes, o jornalista cronista e o jornal, agora o jornalista multimídia, tecnológico, midiático, e os dispositivos visuais e produtos culturais como MP5, iPhones, celulares, câmaras digitais, tablets…

A autora

Jeana Laura da Cunha Santos é jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre e doutora em Literatura pela mesma universidade. Como jornalista, trabalhou no SBT-SC, RBS TV e TV Barriga Verde. Foi assessora de imprensa junto à Associação dos Professores da UFSC e Secretaria da Educação do Estado de Santa Catarina. Atuou como professora na Unisul, Estácio de Sá e UFSC. Atualmente, desenvolve estudos de pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC. É autora do livro A Estética da Melancolia em Clarice Lispector (Edufsc).

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Sonia Virgínia Moreira é jornalista, professora na Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro