Viagem à Europa para lançar a versão francesa de Os Espiões e também para descansar; planos para novas crônicas e, ainda em segredo, início da escrita de um musical que deve estrear no próximo ano sobre a velhice, tarefa que vai dividir com amigos do peito como Ziraldo e Zuenir Ventura – nem parece que Luis Fernando Verissimo quase morreu no ano passado, vítima de uma infecção nos rins que ameaçou se tornar letal. Aos 77 anos, o cronista do Estado de S.Paulo continua na ativa (em velocidade controlada) e, para comemorar, lança Os Últimos Quartetos de Beethoven e Outros Contos (Objetiva), coletânea com dez textos de ficção, dos quais três são inéditos e um estava há muito fora de circulação.
Justamente esses três foram escritos durante o período de recuperação, e há um quase irreconhecível tom de amargura em alguns textos, ainda que prevaleça o tradicional bom humor de Verissimo. No conto que inspira o título da obra, por exemplo, o leitor acompanha o fascínio provocado por Lívia em cinco garotos e descobre como o destino da garota, apesar de poético, é doloroso.
A morte aparece, de fato, em dois textos: em Memória e no inédito A Mulher que Caiu do Céu. No primeiro, Verissimo comprova que o humor não é sua única especialidade e, num relato vertiginoso, descreve a agonia de um homem que, à beira de um ataque cardíaco, consegue se lembrar de frivolidades (como a receita de um martíni ou o ataque do Botafogo dos anos 1950), mas não se recorda de onde deixou os remédios.
Já A Mulher que Caiu do Céu é um exercício de humor fantástico, em que a morte aparece personificada em uma mulher que deve levar José Roberto. Só que ela simpatiza com a família, a rotina e vai adiando a missão.
“Não posso dizer que meu período no hospital tenha influenciado os contos que escrevi depois”, comenta Verissimo. “Ao menos, não que eu perceba. Se houve alguma consequência, foi a difícil constatação de que realmente somos mortais.”
Com sua fala sossegada, praticamente no mesmo tom, o escritor gaúcho falou sobre sua admiração pelos grandes cronistas brasileiros (Braga, Sabino, Mendes Campos) e, apaixonado pelo futebol, não deixou de comentar a atuação do técnico da seleção brasileira, Luis Felipe Scolari.
Verissimo conversou com o Estado em sua casa, em Porto Alegre, a mesma onde morou com o pai, o também escritor Erico Verissimo. Sua rotina foi retomada e o autor já assistiu à versão cinematográfica de O Tempo e o Vento, de Jayme Monjardim, e aprovou a adaptação. Foi na biblioteca paterna, recheada de volumes antigos, que ele concedeu a seguinte entrevista.
Como é a experiência de escrever textos maiores que crônicas?
Luis Fernando Verissimo – É algo novo, ainda que eu já tenha escrito cinco, seis romances, mas é completamente diferente escrever uma crônica ou um romance. Comparo a crônica e o romance com um veleiro e um transatlântico.
Seu humor é particular, único no Brasil. Você se sente próximo de qual escritor?
L.F.V. – Sou muito influenciado pelo humor americano, pela cultura americana em geral. Mas há também a crônica brasileira. Todos os autores da era clássica da crônica brasileira, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Antonio Maria, Sérgio Porto, todos tinham textos bem-humorados. Aliás, estou escrevendo sobre Sérgio Porto, como crônica de jornal. Braga tinha um estilo despojado de escrever, mas sempre com muita graça. E Paulo Mendes Campos, talvez o mais literário deles, também escrevia com humor.
Os três contos inéditos foram escritos depois de seu período no hospital. A experiência influenciou de alguma forma?
L.F.V. – Não. Talvez tenha afetado de alguma maneira o modo de escrever, mas não que eu notasse. Claro que afetou muito a minha vida fora do trabalho.
Você teve que reduzir a carga de trabalho?
L.F.V. – A gente se sente mais vulnerável. Sempre existe aquela secreta desconfiança de que você não vai morrer. Mas, depois desse episódio, comecei a me sentir mais mortal. E, nesse sentido, mudou bastante, foi uma experiência muito ruim.
Embora parecesse mais dolorido para amigos e parentes…
L.F.V. – Fiquei alguns dias tendo alucinações. Não sabia a extensão do que acontecia. A gravidade da situação. Fiquei na UTI por duas semanas e só depois me contaram que eu quase tinha morrido. Achei que era uma gripe, mas uma bactéria afetou os rins.
A primeira crônica escrita para o ‘Estado’ logo depois da retomada, Desmoronamento, foi para contar isso. Foi o único momento que você pensou em escrever sobre essa fase?
L.F.V. – Preferi esquecer. Escrevi aquela crônica, que foi um sonho que tive, o começo de tudo, mas depois daquilo não quis mais escrever a respeito. Não sou essa pessoa tão autocentrada que qualquer coisa que me aconteça… Até escrevi uma crônica que deve sair, dizendo que não aguento esses cronistas que acham que o próprio umbigo é o centro do mundo, quando todo mundo sabe que o meu umbigo é o centro do mundo. Não aguento o egocentrismo dos outros (risos).
O livro pode surpreender o leitor habituado a ler suas crônicas semanais por causa de alguns assuntos, digamos, mais adultos.
L.F.V. – Já tinha feito isso nos romances. É um enfoque e uma técnica completamente diferentes. Sou um grande leitor, sempre li muito, e demorei a escrever. Quando comecei, já tinha lido bastante, já sabia mais ou menos como fazia. É bom, além de ler, começar a escrever. Dá trabalho. A crônica, às vezes, pode ser improvisada, com algum assunto inventado como tema. Romance, não. Tem que dar atenção à gritaria da coisa, voltar, recomeçar.
Como escolhe os nomes dos personagens?
L.F.V. – Às vezes, o mais difícil é escolher o nome dos personagens e o título dos textos. Mas não sei de onde vem. Lembro de situações, pessoas conhecidas, mas não sei. O que gosto de fazer (e nem sempre dá certo) é apresentar um personagem só pelo nome, ou por um diálogo, o jeito de falar, o assunto, a relação entre eles. Introduzir pela conversa boa parte da vida dele. Às vezes, pelo nome, descobre-se a que classe social ele pertence, qual o apelido em casa, etc.
O que na vida vale a pena para inspirar uma crônica?
L.F.V. – Acho que há certos assuntos obrigatórios. Qualquer pessoa que tenha um espaço no jornal não pode escapar de comentar aquele acontecimento. No caso das manifestações de rua, eu não estava aqui. Tinha deixado crônicas prontas que não tocavam no assunto. Mas também se aproveita muito o fato de a crônica ser um gênero indefinido. Até hoje, ninguém definiu bem quando deixa de ser crônica e passa a ser outra coisa. A gente trata de qualquer assunto, qualquer coisa é base de uma crônica. Às vezes, é algo que está acontecendo, às vezes, pode ser qualquer coisa. Uma ficção, um delírio, um exercício de estilo. Aproveito a liberdade que a crônica dá.
Alguma coisa tira o seu sono?
L.F.V. – Vai da minha saúde à saúde do mundo. É um mundo violento, o Brasil passa por uma época em que você não sabe o que vai acontecer. Seria isso: o meu umbigo e a situação do mundo em geral. Se bem que, no Brasil, muito melhorou. Mas, em geral, os nossos grandes problemas não se resolvem, apesar de tentativas. É uma incerteza.
Existe um impasse político?
L.F.V. – Algumas manifestações de nostálgicos da ditadura estão aparecendo, um pouco como reação à desordem, às manifestações, ao vandalismo. Cada vez se fala isso mais abertamente, que “bom era quando havia um movimento de força que mantinha a ordem”…
Você esteve nos EUA há alguns meses. É um país que você vê diferente a cada volta?
L.F.V. – Morei lá em três ocasiões. E tenho uma grande admiração pela cultura americana, mas, ao mesmo tempo, muita crítica. O excepcionalismo americano, a ideia de que são a única nação moral do mundo, e impõe seus interesses a todos. Mas também é um país admirável em vários sentidos. Tenho essa ligação de amor e muita crítica aos EUA.
Por que disse que jamais imaginou chegar aos 77 anos?
L.F.V. – Não sei. Meu pai morreu com 69 anos, na época, não havia todos os recursos de hoje para cardíacos, como a ponte de safena, que eu fiz. É aquela história: a velhice é muito ruim, mas é melhor que não chegar à velhice. Minha mãe foi até os 90. Meu objetivo é ver minha neta Lucinda crescer.
Você acha mais inspirador os erros ou acertos dos casais?
L.F.V. – Escrevo muito sobre casais se desfazendo, se desentendendo. Não é a minha experiência pessoal, estou casado há quase 50 anos com a Lúcia. Já nos desentendemos muito, mas o casamento perdura. Não sei porque aquela preferência. Mas estamos falando de uma experiência comum, a relação entre homem e mulher, como se fossem duas nações inimigas em guerra, tentando uma trégua. Isso dá assunto sempre.
Como observa hoje o futebol? Scolari agrada na seleção?
L.F.V. – Apesar de o Internacional estar numa fase muito ruim, continuo acompanhando. Esse negócio de técnico é engraçado. As pessoas convidam alguns completamente diferentes do outro, com estilos e opiniões diferentes. Por exemplo, Dunga não tem nada a ver com Parreira, Mano Menezes e Felipão. Cada um tem sua maneira de treinar e jogar. E, como a seleção tem sido mais ou menos a mesma, é como um elenco que recebe um script diferente a cada diretor. O elenco é o mesmo, mas o roteiro varia. O Felipão já foi vitorioso. Transmite empolgação, mas não tem sofisticação técnica.
******
Ubiratan Brasil, do Estado de S.Paulo