É positiva essa polêmica em torno da Feira de Frankfurt , que homenageou o Brasil e terminou dia 13 de outubro. A interesse (e suspeição) começou antes da realizacão do evento. Várias tolices foram ditas. Uma delas: que os 70 escritores não eram representativos. Representativos de quê, cara pálida? Como disse alguém, na delegação, realmente não havia paraplégicos e anões. Deveria ter sido pautada pela ideia de “cotas”? Quanto à acusação (apressada) de que só havia um preto e um índio, lembrei-me daquela anedota: um embaixador americano dizia que a questão do racismo no Brasil era mentirosa. Havia racismo, sim. A prova é que não existia preto no Itamaraty. Ao que um embaixador brasileiro respondeu:
– É verdade, no Itamaraty não tem preto, mas em compensação, também não tem branco. Como eu disse ao Paulo Lins (“Cidade de Deus”), meu ex-aluno (que apresentaram como sendo o preto “oficial”) eu, por exemplo, também sou preto. E não abro mão. Para quem quer se informar sobre a questão procurar as pesquisas do geneticista Sérgio Pena desmistificando essa questão.
Outra tolice foi sobre a “gastança” , como se aqueles artistas fossem um bando de “marajás” a sugar o cofre da viúva. Quem assim pensou não entende de licitações, de organização de eventos e botou levianamente em dúvida o caráter de muita gente. E os que alegaram que outros poderiam ter sido convidados, apenas repetiram o que ocorre toda vez que uma seleção é convocada. Cada um tem uma seleção na cabeça. Não dá para colocar todo mundo dentro do campo.
Vim como simples escritor a esse evento. Há uns 20 anos, em 1994, o Brasil foi pela primeira vez homenageado nessa feira. Era Presidente da Fundação Biblioteca Nacional e junto com a Câmara Brasileira do Livro assumimos todos os riscos de tal empreitada, arrastando atrás de nós todo o governo. Como os ministros da cultura duravam pouco em seus postos ( passei por seis deles) e como passamos também por três presidentes, entendi que tinha que atuar no governo à revelia do próprio governo. No serviço púlico a roda é quadrada e a carruagem tem que andar. Hoje há uma estabilidade econômica e política. Naquele tempo vivia-se uma incerteza quântica, crônica e brasileira. Portanto, acho que tenho algo para falar sobre o antes, o durante e depois da Feira de Frankfurt.
Abrindo a polêmica
Além daqueles equívocos iniciais a que aludi, no entanto, outras questões mais relevantes surgiram nesta Feira de Frankfurt 2013. E elas afloraram já na cerimônia de abertura. Ao lado da fala técnica e conscienciosa dos alemães, três brasileiros mostraram ( sem que tivessem combinado) três faces do Brasil. O discurso político e passional de Luiz Ruffato, expondo as mazelas do país, a fala moderada da presidente da Academia Brasileira de Letras, Ana Maria Machado, e a retórica antiga do vice-presidente Michel Temer. Ruffato fui aplaudido e Michel Temer ouviu rumores de vaia. Quando Ruffato deu aquelas estatísticas sobre a miséria brasileira, Ziraldo se levantou pedindo para as pessoas não aplaudirem Ruffato. E se retirou.
A Feira começou, portanto, animada. Ziraldo depois teria um princípio de enfarto, Carlos Heitor Cony levou um tombo e voltou mais cedo ao Brasil e roubaram o celular de Lucia Riff. A internet do Holliday Inn não funcionava e faltou água em alguns quartos. Fora isto, os organizadores – alemães e brasileiros – saíram-se bem.
Ruffato se transformou em estrela do encontro, embora tenha dado entrevista dizendo que foi ameaçado, até fisicamente, por diversas pessoas. Outros escritores não gostaram de sua fala. Acharam-na passional, política, inapropriada. Alegaram que a função de Ruffato era representativa e êle se superpôs ao grupo. Falou mais por si e não pela variedade de escritores brasileiros.
No entanto, muitos se acharam representados por ele. E sua fala teve eco, sobretudo na imprensa alemã. Uma fala moderada não teria suscitado interesse. E aqui cabe a pergunta: por que esse tipo de fala interessa a alguns alemães e ao mercado do livro? E surge uma questão no subsolo de toda essa polêmica, que pode parecer bizarra, mas como dizem os lusos “tem piada”: – quem ama mais o Brasil? Será que Ziraldo ama menos o Brasil que Ruffato? Ou melhor: quantas maneiras existem de amar ( o Brasil)? Tornando a questão mais prosaica e provocadora: quem amava mais o Brasil, Darcy Ribeiro ou Golbery do Couto? Os generais que deram o golpe de 64 ou os guerrilheiros que cont estaram o regime?
Brasil não é uno e quanto ao amor, sabemos todos, ama-se de todas as maneiras, até de maneira inapropriada. Cada um acha que é o melhor amante. E no entanto…
Revendo os nomes das pessoas que estavam naquela Feira, pensei que tipo de discurso inaugural fariam por exemplo, o historiador Jose Murilo de Carvalho ou Rita Maria Kehl, da Comissão da Verdade. O que escritores com uma visão ampla e menos pontual da realidade brasileira, diriam? Cada um pode imaginar o discurso que faria. Lembrei-me de 1980, do livro “Que pais é este?”- questão que até hoje não consegui responder, Ruffato numa conversa fraterna citou aquele verso:” uma coisa é um país, outra um ajuntamento”. Lembrei-me também daquele livro pedagógico sobre “ideologia brasileira” feita pelo professor da USP Dante Moreira Leite, que sumarizou o que, contraditoriamente, haviam dito sobre o Brasil os diversos intelectuais de ontem e hoje. Do conde Affonso Ce lso e seu “Porque me ufano do meu país” a Gilberto Freyre, Manuel Bonfim e Sérgio Buarque de “Razes do Brasil”.
Ufanismo e narciso às avessas
Na Feira de 1994, portanto, há uns 20 anos, houve uma mesa intitulada: “O Brasil no imaginário europeu” Dela, se bem lembro, participaram Darcy Ribeiro, Sergio Rouanet e outros, brasileiros e alemães. O assunto é inesgotável, e, claro que tudo o que ocorreu em 2013 é um episódio novo dessa construção imaginária. O problema dos estereótipos é que eles são, de alguma forma, verdadeiros. Não podem ser simplesmente negados: samba, mulata, carnaval, favela e futebol são uma realidade. Fácil de exportar. Já vi feiras internacionais de literatura onde a Espanha mostrava Don Quixote o Brasil exibia suas mulatas. E o resto do Brasil? Onde fica Clarice Lispetor em tudo isto? ( Por sinal, uma estrela presente e silenciosa em vá rios seminários agora Frankfurt).
O que alguns criticaram em Ruffato foi ele ter praticado a síndrome do “narciso às avessas”, como foi definida por Nelson Rodrigues. Dizia o sarcástico dramaturgo que o brasileiro gosta de cuspir na própria imagem. Isto não é exclusividade brasileira. Já dizia Salomão:” o que ama repreende”. E Ruffato, que admiro como escritor, me disse que ama o Brasil. Ziraldo ama o Brasil, Ana Maria Machado ama o Brasil e, acredito, Michel Temer ama o Brasil.
Portanto, há formas diversas de amar, muitos brasis e muitos e diversos escritores. Por exemplo, acho que a representante da Finlândia foi infeliz na cerimônia de transmissão de homenagens, ao lembrar que a Finlândia foi ocupada pela Alemanha nas guerras recentes. Não era mentira, era de mau gosto e desnecessário. Imaginem se todo alemão começasse sua conversa sempre se desculpando por Auschwitz…
Nessa Feira o Brasil quis se afastar dos estereótipos: samba, mulata, carnaval, futebol. Procurou ser mais “moderno”. Há quem ache isto uma redução paulista. O Brasil, (felizmente ou infelizmente) não é São Paulo. E a literatura brasileira não é só litertura, Aliás, o que é literatura?
Em 1994 muita gente se queixou da presença de Chico Buarque. Alegavam que era uma concorrência “desleal”. Agora surgiu a polêmica em torno de Paulo Coelho. Ao contrário do que ele diz, fez parte da delegação oficial. Que tipo de escritor é ele? A entrevista que deu à imprensa alemã foi mal recebida, até por seus colegas da Academia Brasileira de Letras. Ele não deveria ter exigido um tratamento especial .Imaginem como teria sido interessante se tivesse interagido, por exemplo, com Ferrez num debate sobre periferia e marginalidade. Ferrez, como Paulo Coelho, cada um na sua performance, pertence a outro nicho da cultura. Tem razão a best seller Talita Rebouças na resposta que deu ao Paulo Coelho: ela não foi convidada oficialm ente, mas fez questão de ir lá sem qualquer exigência. Teria sido bom que Paulo Coelho que prega tanta humildade, tivesse humildemente aparecido. Além do mais o assunto era “mercado”.
Características dessa feira
Essa feira de Franfurt, teve característica específicas que devem ser destacadas caso se queira entender o conjunto:
a) o tema dominante era o mercado (alemão) . Com isto, quem não tinha livro traduzido para o alemão ficou em segundo plano. Além do mais, a escolha dos oradores oficiais ( Luiz Rufffato no início e Paulo Lins no final) não foi ingênua;
b) tal feira embora tivesse representantes de vários gêneros, deu ênfase a um tema dominante na midia: a periferia e a marginalidade. Daí o interesse em torno de Ferrez oriundo das favelas paulistas (Capão Redondo), de Paulo Lins que veio da favela carioca (Cidade de Deus), e pelo escritor índio Daniel Mundukuru, da tribo respectiva;
c) foi uma Feira com uma ênfase paulista e o curador da parte literária foi o paciente Manuel da Costa Pinto. Acresce que várias editoras, revistas e jornais de influência nacional encontram-se em São Paulo;
d) houve uma ênfase nos novos, naqueles que surgiram, digamos dos anos 90 em diante. Mesmo sendo autores com poucos livros e jovens foram expostos e vendidos. Esses escritores que deram muitas entrevistas, conversaram com agentes, fecharam não sei quantos contratos e alguns estavam fazendo o périplo por vários paises;
e) havia também escritores “seniors”. Alguns estiveram na feira de 1994 e aquela feira foi o momento de reconhecimento internacional dos que se firmaram a partir nos anos 70;
f) os escritores jovens agora se beneficiaram dos projetos de tradução literária criados pela FBN na minha administração, que e foram ampliados por Galeno Amorim. Esse fomento de internacionalizaçao começou com os encontros sistemáticos de agentes literários estrangeiros no Brasil e outras iniciativas daquela época quando o Departamento Nacional do Livro (FBN) era dirigido pro Márcio Souza. Ou seja, a internacionalização de agora começou há 20 anos;
g) em outros termos, como disse Renato Lessa, atual presidente da Fundação Biblioteca Nacional, esssa geração de novos escritores, com tanta liberdade de expressão, é beneficiária também daqueles que foram torturados e exilados nos anos de chumbo. A liberdade custa caro.
Analfabetismo e leitura
Na apresentação da Finlândia, como sucessora do Brasil na Feira, impressionou-me o fato de afirmarem que aquele é um país 100% alfabetizado. Ao lado estava o Paulo Lins, que entregava à escritora finlandesa o bastão. Contraste cultural. Um músico brasileiro que mora na Finlândia me disse que lá o único problema é que não há problemas, pois governo resolve todos os problemas dos cidadãos.
Certa vez, na livraria “Écume de pages” em Paris, perguntei ao livreiro porque não havia uma estante de autores brasileiros. Jorge Amado estava na estante dos espanhóis. Ele disse que não havia produção suficiente que justificasse tal estante. Imagino se agora, que os brasileiros estão sendo traduzidos, estamos próximos disto.
Mas não somos um país de leitores. Nisto a ansiedade e indignação de Luiz Ruffato é legitima. Somos exilados dentro do próprio Brasil. É muito difícil repetir a façanha de Jorge Amado e Erico Veríssimo.
Em 1994, na Feira de Frankfurt, participei de uma mesa redonda sobre projetos de leitura Havia entusiasmo e curiosidade em torno do Proler da Fundação Biblioteca Nacional. Ocupávamos uma liderança na América Latina e tanto a Alemanha quando Israel queriam desenvolver com o Brasil novas estratégias de política de leitura.
Agora, em 2013 (vinte anos depois) houve outra sessão nesta Feira de Frankfurt sobre leitura. Eu participei ao lado de José Castilho, que opera o Plano Nacional do Livro e da Leitura. E pontuei que a “leitura” só virou preocupação nacional a partir do Proler dentro da Biblioteca Nacional. Antes nunca se havia pensado numa política nacional de leitura. Pensava-se em editora, pensava-se em biblioteca, pensava-se em alfabetização e a palavra “leitura” estava embutida, era uma abstração. Pois é preciso dar visibilidade à palavra “leitura”. Há pouco, dois importantes editores brasileiros disseram que o Brasil editava livro demais, que a livrarias não sabiam o que fazer. Equívoco. O Brasil não produz livros demais, produz leitores de menos.
A Feira de Frankfurt é um louvável esforço em torno do mercado do livro.
Algum país, talvez a Finlândia, talvez o Brasil poderia fazer uma feira mundial da “Leitura”. É preciso ira além do mercado. A literatura sempre fez isto.
Leia também
Do caráter destrutivo ao país sem nenhum caráter – Danielle Naves de Oliveira
******
Affonso Romano de Sant’Anna é jornalista e poeta; seu site