Em 2013, quando se comemoram os 90 anos do nascimento de Fernando Sabino, as homenagens se devem não só ao excelente cronista, ao notável contador de histórias, mas também ao cidadão íntegro, ao exemplo de profissional, ao amigo fraterno, homem para quem viver era uma alegria que se renovava a cada manhã. Conheci-o em 1979, quando o promotor cultural Paulo Peroba o levou a Fortaleza para palestras que se repetiram muitas outras vezes, sempre com grande público ansioso por vê-lo e ouvi-lo. Nasceu, então, bela e afetuosa amizade que cultivamos até à morte dele, em 11 de outubro de 2004, às vésperas de completar 81 anos, pois que, significativamente, viera ao mundo no Dia das Crianças, para por toda a vida ser menino.
Amigo fraterno: esse, talvez, o valor que melhor o represente. Com Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino, integrou a confraria dos “Quatro Cavaleiros de um Íntimo Apocalipse”, como se autoproclamavam. Profunda amizade que os uniu por mais de 50 anos, sobre um alicerce que divertidamente concordavam em admitir: o segredo era que pelo menos um faltasse aos encontros, para que três pudessem falar mal do ausente…
Jovens na Belo Horizonte do pós-Segunda Guerra, o grupo inspirou a Fernando Sabino O Encontro Marcado (1956), primoroso romance que, meio século depois, chegaria à consagradora marca da 82ª edição. Nele, acha-se o drama não de uma, mas de todas as gerações, com as incertezas, as ansiedades e os sofrimentos próprios da juventude, viva ela no Brasil ou na França, na Inglaterra, na Espanha, na Holanda ou na Alemanha, alguns dos países em que a obra foi traduzida.
Em 1941, lançava-se Os Grilos não Cantam Mais, contos de um certo Fernando Tavares Sabino, que mandou o volume para Mário de Andrade e dele recebeu um conselho inteligente: para que os leitores lhe guardassem o nome, assinasse Fernando Tavares ou, como acabaria por escolher, Fernando Sabino… Seis anos depois, começa a enviar, de Nova York, crônicas para o Diário Carioca e O Jornal, do Rio de Janeiro, as primeiras que ao longo de décadas chegariam a milhares, depois reunidas nas coletâneas O Homem Nu (1960), A Mulher do Vizinho (1962), A Inglesa Deslumbrada (1967), Deixa o Alfredo Falar! (1976), A Falta que Ela me Faz (1980) e O Gato Sou Eu (1983), entre muitas outras. Livros que conquistavam o público a começar pelos títulos, matéria em que o cronista era doutor, a ponto de ajudar colegas: foi dele, revelou-me, a sugestão para que um romance de Autran Dourado belamente se chamasse A Barca dos Homens, e não História de Caça e Pesca, título que algum livreiro incompetente poderia destinar à seção de literatura esportiva…
Prazer perdido
Cronista que se destacava entre os melhores do gênero, Sabino optou, em 1986, por classificar sua prosa curta em três espécies, “com a designação um tanto circunstancial de conto quando na terceira pessoa, história quando experiência pessoal e crônica quando em tom reflexivo”. Uma destas reproduz a incrível coincidência que lhe contei, sabedor do quanto se impressionava com os mistérios do destino: no Rio de Janeiro, compro um disco do trombonista Raul de Barros, vou para o apartamento do meu irmão e vejo, na sacada à direita, ninguém menos do que o trombonista Raul de Barros, de quem o mano ignorava ser vizinho…! Fernando narra o que ouvira de mim para arrematar a crônica: “E confraternizados, passaram os dois então a celebrar esse extraordinário acontecimento que é o de, numa cidade com mais de 12 milhões de habitantes, dois seres humanos se encontrarem”.
Ao criador de O Grande Mentecapto devo muito do pouco que aprendi sobre jazz, paixão que compartíamos. Foi ele quem me descobriu as semelhanças entre uma jam session e uma partida de futebol: em ambas prevalecem a criação coletiva, a improvisação e o toque do gênio. Como prova, chegou a escalar um “time de jazz”: na defesa, piano, baixo e bateria; no meio de campo, sax e guitarra; no ataque, trombone, trompete e clarineta – esta, fazendo misérias na ponta direita, como Garrincha…
Encontrarmo-nos em Fortaleza, visitá-lo com Ana Maria no apartamento carioca da rua Canning, conversarmos sobre literatura e sobre a vida literária era sempre um grande prazer, que perdemos há nove anos. Com o passar do tempo, difícil não parodiar o título que deu a um dos seus livros: é cada vez maior e mais sentida a falta que Fernando nos faz.
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Edmílson Caminha é jornalista e escritor