Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O homem deprimido

Albert Camus, cujo centenário se comemora na quinta-feira [7/11], é um fantasma em nossas vidas. Com frequência, o encontramos citado ou evocado, às vezes em obras e circunstâncias inesperadas. Não consigo ver Os Pássaros, de Hitchcock, sem me lembrar de A Peste. Na cena em que Suzanne Pleshette depara-se com uma gaivota morta na porta de sua casa, Bodega Bay transfigura-se em Oran, com pássaros no lugar dos ratos. A sequência de Deus e o Diabo na Terra do Sol em Monte Santo, com o vaqueiro Manuel carregando uma pedra na cabeça, sempre me lembrou a passagem do cozinheiro que paga similar promessa em A Pedra que Cresce, a derradeira narrativa de O Exílio e o Reino, por sinal inspirada num ritual místico presenciado por Camus em Iguape, no interior de São Paulo, na companhia de Oswald de Andrade e um motorista que era a cara de Augusto Comte.

Franceses vez por outra especulam sobre o que Camus estaria pensando a respeito de alguma controvérsia do momento. Poderíamos fazer o mesmo com relação aos black blocs, por exemplo. Desconfio que Camus reprovaria a violência dos black blocs, e Sartre talvez a aprovasse, como fez com a agitação dos maoístas em Paris.

Uns dez dias depois de ver um romeiro carregando uma pedra na cabeça em louvor ao Senhor Bom Jesus de Iguape, Camus pegou as sobras de uma manifestação de estudantes e populares contra o aumento das passagens de ônibus, em Santiago do Chile, violentamente reprimida pela polícia. Comparou-a, em seu diário de viagem, a um terremoto. Sua sumária descrição do quebra-quebra, com ônibus virados e incendiados, me lembrou vocês sabem o quê:

“Quando saio de lá, as lojas baixaram suas portas, e a tropa armada e de capacete ocupa literalmente a cidade. Às vezes, atira a esmo. É o estado de sítio. Ouço disparos isolados na noite”.

Não ficou mais de cinco dias no Chile, a seu ver, “um país admirável”. Tirante a Argentina, onde passou voando por conflitos com a ditadura peronista, que recém proibira a encenação de uma peça de sua autoria e exigiu ler antes o texto de sua única palestra programada para Buenos Aires (Camus disse não e seguiu viagem), sentiu-se bem melhor nos países de língua espanhola, com a qual tinha alguma intimidade. Adorou Santiago e, com mais intensidade, Montevidéu, “cidade encantadora”, cuja descontração lhe deu a impressão de que ali, ao contrário das outras cidades visitadas, conseguiria morar.

Jantar indigesto

Pela vontade de Victoria Ocampo, que o convidara a visitar a Argentina em 1946, quando se encontraram em Nova York, Buenos Aires teria sido o ponto alto da viagem de Camus à América do Sul. Mas, entre o convite e o tour cultural patrocinado pelo governo francês três anos depois, Perón assumiu a Casa Rosada e o “ateísmo existencialista” do escritor passou a ser visto com desconfiança pelos mandarins da cultura argentina. Em Buenos Aires, que achou “de uma feiura rara”, Camus só encontrou paz e prazer no casarão de Ocampo. Lá conheceu alguns admiradores e outros nem tanto, como o comunista Rafael Alberti. Não há menção, no diário, ao camusiano Ernesto Sábato, cujo romance de estreia, O Túnel, Camus recomendara para o catálogo de traduções da Gallimard, um ano antes.

O Brasil foi seu ponto de chegada e partida. Está tudo contado no Diário de Viagem, editado postumamente na França, em 1978, e aqui publicado pela Record. A bordo de um navio francês, desembarcou no Rio em 15 de julho de 1949. Entre nós tinha mais fama de “filósofo existencialista” que de dramaturgo ou romancista. Salvo engano, nem O Estrangeiro nem A Peste ainda haviam sido traduzidos para o português.

Sua primeira impressão da cidade, ao adentrar a baía de Guanabara, foi bem mais lisonjeira que a de seu patrício Claude Lévi-Strauss na década anterior. Implicou de cara com o “imenso e lamentável Cristo iluminado”, admirou o desenho das montanhas, mas acabaria simpatizando mais com a baía de Todos os Santos, sem a espetaculosidade da de Guanabara. Viajou embodiado; por duas vezes, em alto mar, pensou em suicídio, que, como se sabe, considerava “a única questão filosófica séria”; e nesse estado continuou até embarcar de volta a Marselha, 47 dias depois.

O Correio da Manhã cobriu a chegada e o séjour carioca de Camus melhor que os concorrentes. À primeira das três conferências do escritor, dedicou um editorial de primeira página, não assinado, com elogios ao brilho de sua mente e reservas a algumas de suas “ideias difusas” e “frases confusas”. Ainda no cais, o futuro autor de O Homem Revoltado fizera questão de esclarecer aos jornalistas presentes que não era existencialista, tinha uma formação mais grega do que nórdica e se considerava mais discípulo de Platão que de Hegel.

Muito solicitado e paparicado, a agenda lotada de compromissos culturais, mundanos e folclóricos (levaram-no até a uma sessão de macumba no subúrbio carioca de Caxias, a um bumba meu boi no Recife, a um candomblé em Salvador), andou de lancha, bonde, lotação e trem da Central, sucumbindo ao enfado e ao cansaço, agravados por uma gripe que virou bronquite e já era uma recidiva da tuberculose. Tudo isso contribuiu para a imagem de uma pessoa triste, deprimida e mal-humorada que nestas bandas deixou.

Assim também o guardou na memória Otto Lara Resende, que em duas oportunidades trocou ideias com ele, uma delas na companhia de Murilo Mendes. Este e Manuel Bandeira, ambos também tuberculosos, foram dos poucos intelectuais brasileiros por quem o visitante demonstrou simpatia e admiração. Outras exceções: Aníbal Machado e Oswald de Andrade, seu bufônico anfitrião paulistano. Se não estivesse passando uma temporada em Paris, Paulo Mendes Campos também teria caído nas graças de Camus, de quem sempre me pareceu um sósia espiritual.

Para Augusto Frederico Schmidt, Camus reservou sua munição mais pesada. Descreveu o poeta como um paquiderme, de olhos empapuçados e boca caída, assaz grosseiro à mesa. Jantar ao seu lado, revelou-se “uma provação”, talvez a mais constrangedora de toda a viagem, que, a certa altura, transtornado por outras provações, comparou a um “calvário”. O Brasil o inspirou, mas não lhe fez bem.

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Sérgio Augusto é colunista do Estado de S.Paulo