Quando um dos filhos de Luiz Costa Lima tinha 6 anos, fez uma daquelas perguntas desconcertantes típicas da infância: “Pai, o que é ficção?” Mais tarde, enquanto fazia o desenho de um céu, concluiu por conta própria que ficção “é um sol que não dói no olho”. Costa Lima relembra essa história com gosto durante uma entrevista em casa, na Gávea, sobre seu novo livro, no qual repassa cinco décadas de uma carreira dedicada a investigar a natureza da literatura.
Em “Frestas: a teorização em um país periférico” (Contraponto), o crítico e professor emérito da PUC-Rio, de 76 anos, aponta territórios ainda por explorar em sua obra e revisita conceitos desenvolvidos em livros como “Mímesis: desafio ao pensamento” (Record), “O controle do imaginário e a afirmação do romance” e “A ficção e o poema” (Companhia das Letras), este premiado há poucos dias com o Jabuti de Teoria e Crítica Literária.
Além disso, o livro traz textos mais pessoais que traçam um panorama do meio intelectual brasileiro dos anos 1960 até hoje. Neles, Costa Lima narra sua expulsão da Universidade do Recife em 1964, por colaborar com o programa de alfabetização do educador Paulo Freire, visto como ameaça pelo regime militar. E reflete sobre os desafios da atividade intelectual à margem dos grandes centros e em tempos de “círculo vicioso de banalização” na universidade, no mercado editorial e na imprensa.
“Frestas” será lançado dia 25, na Travessa de Ipanema, junto com uma nova edição do primeiro livro de ficção do crítico, “Me chamo Lully” (7Letras), narrado do ponto de vista de sua cachorrinha de estimação.
Você abre o novo livro com uma epígrafe de Guimarães Rosa: “Narrar é resistir”. Como interpreta essa frase?
Luiz Costa Lima – Para mim essa frase significa, em primeiro lugar, o que acrescento na mesma página: narrar é resistir “contra a decadência física e mental, a atração (como negá-la?) pelo efêmero”. O segundo significado, menos existencial e mais pessoal, é a resistência contra as frustrações de ser professor e escritor nos trópicos. Se você teoriza e escreve não apenas nos trópicos mas em língua portuguesa, sabe que seu raio de alcance é pequeno, sequer comparável ao de nossos vizinhos hispano-americanos, por exemplo. E há também a resistência a uma frustração política. Minha geração acreditava que a única coisa que faltava para o Brasil mudar por completo era o fim da ditadura. Linda ingenuidade. Então narrar é um gesto essencialmente positivo de resistência intelectual contra eventuais frustrações existenciais, pessoais e políticas.
Além das narrativas, a crítica literária também pode ter esse sentido de resistência?
L.C.L. – A experiência nos ensina que não é fácil tentar teorizar em um país sem nenhuma tradição reflexiva, como o Brasil. Nossos intelectuais mais notórios ou têm alguma relação com a política (quando não são plenamente políticos) ou têm um reconhecimento que é como o vento que passa. Cito apenas um exemplo desse último caso: o padre Henrique Vaz, jesuíta de formação alemã que trabalhou por toda a vida em Belo Horizonte e morreu em 2002. Embora tenha publicado vários livros de qualidade sobre antropologia filosófica, história da filosofia e modernidade, nunca vi uma citação a ele em meus 30 anos de ensino na PUC. Poderia citar outros, como Gerd Bornheim, Benedito Nunes e José Américo Motta Pessanha, grandes pensadores brasileiros que ocuparam um lugar periférico dentro de um país periférico.
Mesmo nessa situação, os intelectuais que você cita criaram obras de relevo. Pode haver alguma vantagem nessa posição periférica?
L.C.L. – Ser periférico é também uma forma de ver o mundo por outro ângulo. Se eu não vivesse onde vivi quase a vida toda, se não tivesse passado pela ditadura, talvez não tivesse chegado ao conceito de controle do imaginário. O grande exemplo da potência do olhar periférico é Sousândrade. Na década de 1870, quando se mudou para os Estados Unidos com a filha, ele viu o inferno de Wall Street e fez no poema “O guesa” uma crítica das relações capitalistas que é atual até hoje. Enxergou isso porque estava lá como figura marginal. E, por seu olhar e seu estilo, se tornou marginalizado no Brasil também.
Você disse que uma das desilusões da sua geração é o fato de o país não ter se transformado “por completo” depois da ditadura. “Frestas” repassa sua carreira do momento em que você foi expulso da Universidade do Recife pelo regime militar, em 1964, até hoje. Como mudou o ambiente intelectual do país nesse período?
L.C.L. – O Brasil não tem tradição forte de debate intelectual, por vários motivos. Uma razão é que a universidade como grande centro de reflexão, uma tradição no Ocidente, é muito recente entre nós. Uma segunda razão é o analfabetismo generalizado. Fui posto fora da universidade pela ditadura porque trabalhava com o serviço de alfabetização de Paulo Freire, que, aliás, sofria oposição tanto da direita quanto do Partido Comunista. Penso que o problema hoje se alastrou, em vez de ter diminuído como apresentam as cifras oficiais, porque temos um analfabetismo alfabetizado, o que chamam de “analfabetismo funcional”. É um problema mais amplo do que se imagina, atinge até professores universitários. Uma terceira razão é que dentro da própria universidade há um círculo vicioso de banalização: o professor, que já chega mal preparado, sofre pressões para entregar uma informação simplificada ao aluno, que só quer um diploma para ter um emprego no qual seu analfabetismo funcional funcione. Um quarto motivo é nosso compadrio, que se estende ao meio acadêmico e prejudica o debate público, os concursos e o ensino.
Como fica a crítica nesse ambiente?
L.C.L. – Muito mal. Decidi fazer uma súmula da carreira em “Frestas” também pelo temor de que seja cada vez mais difícil a publicação de um livro como esse no cenário presente do mercado editorial e da imprensa cultural no Brasil. O mercado expulsa de si tudo que tem algum grau de sofisticação intelectual, dando preferência a obras que se autodiluem, livros de divulgação e a ficção mais palatável. E os suplementos literários escasseiam. De certa forma, os mecanismos de restrição à crítica podem ser entendidos em uma escala política mais ampla. Há uma unanimidade na política brasileira, da esquerda à direita, de que educação e cultura são conversa de salão.
Em “Frestas”, você revê alguns dos principais temas a que se dedicou em cinco décadas de carreira, como sua teoria da mímesis e o conceito de controle do imaginário. Que conclusões tirou desse momento de reflexão sobre a própria obra?
L.C.L. – Procurei apontar também aspectos ainda a desenvolver em meu trabalho, como o conceito de “ficção externa”, que associo a elementos ficcionais fora do circuito literário, desde o cálculo de probabilidades às formas de cumprimento mais banais, como quando perguntamos “como vai você?”, mesmo sem esperar uma resposta sincera. Mas, de fato, sintetizei conceitos-chave. O controle do imaginário, por exemplo, se observa quando a sociedade precisa separar no campo da expressão aquilo que é socializável do que não é. É diferente de censura, que supõe normas legais cuja infração acarreta punições. O controle é mais sofisticado, supõe a deslegitimação de tudo que procura se contrapor a um valor vigente, sem que esse valor precise ser explicitado.
E como definiria mímesis hoje ?
L.C.L. – Desde que o conceito de mímesis aparece entre os gregos, com Aristóteles no século V a.C., até ser rejeitado pelo romantismo alemão no século XVIII, dá-se ênfase à semelhança da obra com a realidade. Mas mais importante que o vetor de semelhança é o de diferença, caso contrário a obra seria mera imitação da realidade. Então, uma definição possível é: mímesis artística supõe diferença sobre um fundo de semelhança. E dou-lhe o exemplo de como uma criança pode entender isso. Quando meu filho Henrique tinha 6 anos, ele perguntou: “pai, o que é ficção?” Pedi um tempo para responder. Quando voltei ele estava desenhando um sol, uma coisa redonda com uns raiozinhos no papel. Antes que eu começasse a explicar, ele mesmo concluiu: “Ah, isso que eu estou fazendo é ficção! Você viu que é um sol, mas não é um sol porque não dói no olho”.
Junto com “Frestas”, você lança uma nova edição de “Me chamo Lully”. O que esse livro significa para você?
L.C.L. – Lully é como uma filha para nós, veio para cá com duas semanas e está com 10 anos. Um dia, depois de conversar com minha mulher sobre isso, chegamos a essa história em que há um aparelho capaz de traduzir o pensamento dos cães. Foi divertido, incluí muitas coisas da vida dela, mas outras totalmente inventadas.
******
Guilherme Freitas, do Globo