Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Chás, intrigas e bajulação

Dava um conto de Machado de Assis. Um escritor foi eleito para a Academia Brasileira… de Letras, o primeiro em 10 anos. A imprensa nem parece tão surpresa, o que só desmerece a dita instituição, nosso Petit Trianon. A imprensa habitou-se. Esta é a terceira vez que o romancista Antônio Torres concorre à uma cadeira na ABL. Na primeira, há cinco anos, perdeu para o jornalista e crítico musical Luiz Paulo Horta, cuja cadeira 23 ocupa agora. Na segunda, há dois anos, foi vencido pelo jornalista Merval Pereira que havia publicado um livro solo, O Lulismo no Poder, compilação de suas crônicas no Globo. Torres mais do que merece estar ali – resta ver se a casa de Machado merece um escritor puro-sangue como este baiano.

Torres escreveu 17 livros desde Um Cão Uivando para a Lua, em 1972, e de lá para cá, triste sina neste país, não fez outra coisa senão escrever. Ganhou um prêmio Machado de Assis em 2000 pelo conjunto da obra, um Jabuti em 2006 (Pelo Fundo da Agulha),teve traduções, prêmios e condecorações pelo mundo – como o Chevalier des Arts et Lettres na França, por Um Táxi para Viena d’Áustria (1991). Mas seu perfil é o do típico escritor brasileiro, pouco reconhecido, pouco recompensado, marginalizado.

Primeiro filho de 13 irmãos nascido no Junco, sertão baiano, que ganhou o primeiro salário como sacristão, Torres tem 73 anos e falta pouco para concluir como o médico memorialista Pedro Nava que nunca se candidatou a imortal: “Aos 80 anos o sujeito já é uma vaga”. Torres ocupa a primeira linha das letras brasileiras embora muita garotada deve perguntar “Torres, quem?”. E o pior é que a ABL não vai contribuir para que o autor de Essa Terra(1976) se chegue mais à terra – se bem que a clausura de Torres é diferente da nave espacial ABL.

Briga de foice

Machado de Assis, o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, definia, em 1897, o que a casa deveria ser: “Uma torre de marfim, onde se acolham espíritos literários, com a única preocupação literária, e de onde, estendendo os olhos para todos os lados, vejam claro e quieto”.

A ABL optou pela abertura a não literatos, mas escancarou demais. Acolheu o general que integrou a junta militar que governou o Brasil em 1969, Aurélio Lyra Tavares. Enquanto a ditadura censurava Julinho da Adelaide, pseudônimo de Chico Buarque, o general publicava poemas como Adelyta ( acrônimo de “A” de Aurélio, “ly” de Lyra, “ta” de Tavares). Em 1912 a casa já havia tornado imortal outro militar, Lauro Muller, ministro das Relações Exteriores que nunca havia publicado nada além de um folheto impresso às pressas em Paris para justificar a nomeação. Imortal foi o ditador Getúlio Vargas em 1943, cujos dedos, segundo Guilherme Figueiredo, usaram mais o charuto do que a caneta, mas serviram para doar em agradecimento a sede da ABL. A torcida política integrou no time o senador José Sarney, e não foi pelos romances.

Depois de Sarney imortalizado, Sergio Buarque de Holanda e Carlos Drummond assinaram um documento recusando-se a pertencer à Academia. Chico Buarque explica sua própria ausência: “Esse documento é hereditário”

Golbery do Couto e Silva não pretendia entrar, mas também impediria que Juscelino Kubitschek, opositor ao golpe de 1964, entrasse, e a Academia obedeceu por conta de um cheque felpudo para permitir a construção do anexo da sede. Josué Montello, amigo de JK, foi advertido; Juscelino não entrou e mais tarde, como ressoa nos bastidores, o mesmo Montello batalhou pela candidatura do jornalista Roberto Marinho de olho numa coluna no Globo e sonhando ver seu romance Os Tambores de São Luisvirartelenovela. Nem uma coisa nem outra aconteceu, mas Roberto Marinho entrou.

O poeta Mario Quintana foi preterido três vezes, entrou Eduardo Portela, ex-ministro da Educação de João Figueiredo e secretário de Cultura do Rio de Janeiro. Santos Dumont, aviador, supersticiosíssimo, não aceitaria o convite se a cadeira fosse a 13 – era a 38 –, foi eleito em 1931, arrependeu-se, desistiu, os acadêmicos não acreditaram e mantiveram a posse, mas o inventor enforcou-se com a própria gravata no ano seguinte, sem tomar posse – a cadeira é a ocupada por José Sarney. O economista Roberto Simonsen morreu discursando. Guimarães Rosa perdeu a primeira, voltou, ganhou, sofreu um ataque cardíaco três dias depois da posse.

Muitos nem entraram. Oswald de Andrade concorreu duas vezes em vão. Clarice Lispector, por ser ucraniana, era mantida ao largo como o tradutor e escritor húngaro Paulo Rónai. A desculpa era por não serem brasileiros. Cecília Meirelles ficou de fora, Clarice declarava jamais querer pertencer à ABL. São do mesmo time o arquiteto Oscar Niemeyer, o poeta Ferreira Gullar, os escritores Érico Veríssimo, Fernando Sabino e Rubem Fonseca, o crítico literário Antonio Cândido – antifardão, antiacadêmicos.

Muito chá, muito intriga, muita vaidade, muita bajulação, colunismo social, política, politicagem para conseguir o voto que garante a imortalidade, 9 mil reais por mês, duas vagas para carros no centro do Rio, seguro saúde de luxo, enterro de primeira y otras cositas más. A ABL garante o mimo com o aluguel das salas do Palácio Austregésilo de Athayde, vizinho ao Petit Trianon, doado pelo regime militar depois de afagos, eleições e agrados. Mas como acontecia na França de Maria Antonieta e Luís 16, o Petit Trianon já viu guerras surdas ou explícitas. Como a ocorrida entre os desafetos Lêdo Ivo, chamado de “poeta de quinta categoria” por Eduardo Portella, e o próprio, em quem Ivo atirou um copo d’água e justificou: “Ele é dono de uma cabeleira obscena”.

Briga de foice também da ala esquerda contra a direita, como quando o economista Roberto Campos ocupou, em 1999, a cadeira do dramaturgo comunista Dias Gomes, morto num desastre de carro em São Paulo no ano anterior. Briga de foice pelo fardão que custa a bagatela de 70 mil reais e, segundo Gullar, “que esquisito usar capa e espada no Rio numa época dessas”.

Barulho necessário

É exagero dizer que a ABL não tem nada a ver com literatura. Antônio Torres vai ter muita conversa com Cícero Sandroni, Ana Maria Machado, Lygia Fagundes Telles, Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro, José Murilo Carvalho, Nélida Piñon, Sergio Paulo Rouanet, Sábato Magaldi, entre outros. Ali resta a sombra de Jorge Amado, Zélia Gattai, João Cabral de Melo Neto, Antonio Callado, Euclydes da Cunha, Manuel Bandeira.

A pergunta é como a Academia Brasileira de Letras tem interferido num país que trata a cultura do jeito que trata, para que afinal ela serve, qual a inserção dos intelectuais desse porte num país com a educação cada vez mais minada e a leitura deteriorada? Ao contrário dos ganhadores dos prêmios Nobel, que se esforçam para a cada ano publicar e interferir cada vez mais, como Saramago e Vargas Llosa, os brasileiros, cansados de guerra, se acomodam no que o ex-presidente Marcos Villaça chamou de “a principal grife do país”.

Antônio Torres acaba de entrar e isso é uma bela, belíssima notícia. Acadêmicos, tomem menos chá e façam mais barulho no panorama cultural do país.

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Norma Couri é jornalista