Quando Rui Campos decidiu organizar o Artimanhas em Geral, não faltaram livreiros mais experientes para aconselhar: se ele se envolvesse em eventos, ainda mais com aqueles malucos do Rio de Janeiro, sua empresa não iria para frente. Não adiantou. O jovem mineiro já estava enturmado com os poetas que frequentavam como ele o Posto 9 e havia meses deixava que colocassem seus livrinhos de mimeógrafo à venda em sua livraria escondida no fundo de uma galeria comercial de Ipanema. Filial da Carlitos, tradicional em Copacabana, a loja ia fechar se não tivesse sido assumida por dois de seus vendedores – Campos e a namorada que o fizera abandonar Belo Horizonte. Tudo começou por amor, antes de se tornar a rede de livrarias da Travessa.
Visto com olhar atual, o evento de 1975 foi um sucesso: com o entra-e-sai de artistas e intelectuais, a livraria se firmava como destino e ponto de encontro, sem falar no impacto imediato nas vendas – quem vai a uma livraria sempre descobre o quanto precisa desesperadamente de um livro. Esse é o negócio, hoje.
No contexto da época, porém, Campos passou por perrengues naquele fim de semana do Artimanhas. Mesmo tendo convidado o grupo de poetas “mais organizado” – o Nuvem Cigana, de Chacal, Bernardo Vilhena, Charles Peixoto e Ronaldo Santos –, a proposta de uma “feira do livro como as de cordel” quase saiu do controle, em tempos de contracultura e militância marxista. Primeiro foi o amigo Tavinho Paes, que chegou cheio de latas de cola para pregar poemas nas vitrines das lojas já fechadas. “Não! O Frederico me mata”, disse Campos, que já temia pela reação do síndico do prédio aos barbantes esticados para pendurar os livrinhos. Mais tarde, seria a vez de uma trupe de poetas da zona norte, adversária da “poesia burguesa” da zona sul, aparecer e explodir rojões que ecoaram pela galeria. Quando alguém teve a ideia de ler poemas, o clima acalmou.
Autor abençoa, em vez de autografar
“Foi um troço maluco, mas lindo”, diz Campos. “Outro dia, o Chacal comentou como aquilo foi a retomada da leitura de poesia no Rio, em plena ditadura.” A livraria precursora da Travessa (que se chamava Muro) era conectada não só à juventude do desbunde como aos movimentos de resistência ao regime militar. “Tínhamos os livros ‘de capa vermelha’”, diz Campos, chamado duas vezes à Polícia Federal para explicar importações de exemplares considerados subversivos. “Fazíamos de tudo para conseguir os textos visados pela censura, o que podia ser tanto um manifesto marxista quanto publicações da vanguarda da arte.” Sobrinho do governador de Minas Gerais Milton Campos (1900-1972), ele, entretanto, nunca se envolveu diretamente com política. “Minha militância era a livraria, era ter na prateleira Mensagens Revolucionárias, de Artaud.”
Quando o aluguel da loja aumentou, Rui Campos, então com 21 anos, aceitou a proposta do proprietário de se mudar para um ponto mais barato, no subsolo. “Aí que a Muro se encontrou mesmo, porque era o subterrâneo assumido. Começamos a ter um equilíbrio financeiro.” A badalação era tanta que, quando avistava o jovem livreiro nas ruas de Ipanema, o poeta Waly Salomão (1943-2003) costumava bradar: “As ca-ta-cum-bas de Ipanema!”, e Campos reproduz a voz impostada do artista, numa imitação que se repete durante a entrevista quando conta episódios envolvendo pessoas folclóricas do Rio. Afinal, são “quase 40 anos de balcão”.
Nessas alturas, a Muro já não abrigava apenas evento s de escritores da “literatura marginal” que se autopublicavam (“Hoje a estratégia de autopublicação é decantada como novidade”, ironiza), mas também autores como o cineasta Glauber Rocha (1939-1981) e o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), que tiveram lançamentos concorridos na livraria. Maíra, de Ribeiro, atraiu em 1976 a intelectualidade da cidade – fenômeno que se repete até hoje nas noites de autógrafo mais descoladas das filiais de Ipanema e do Leblon, embora os recordistas recentes de público tenham sido o elenco do Porta dos Fundos e o padre Marcelo Rossi – no lançamento de Ágape, no Barrashopping, cerca de 2 mil exemplares foram abençoados, em vez de autografados, pelo padre-escritor.
Fusão com a Dazibao
Para o livreiro, tudo continua sendo motivo para entusiasmo. “A mais importante característica de uma livraria é saber interpretar o seu público, o que ele quer. A Travessa é a cara do Rio. E a Muro, como ponto de conspiração e irradiação de ideias, era a cara daquela época.” Foi a percepção de mudança no contexto e no público que fez Campos sair da sociedade que tinha feito na Muro com seu cliente mais fiel – Aluízio Leite, diretor da cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio (MAM) e conhecido por ter depois se tornado sócio da livraria Timbre, no Shopping da Gávea.
Se havia uma figura folclórica no meio livreiro nos anos 1970 e 1980, essa figura era Leite: “Ele conhecia o Rio inteiro”, diz Campos. Sua conta gigantesca como cliente da Muro, segundo ele próprio, era uma estratégia de ocupação chinesa: um dia a dívida seria tão grande que Campos o aceitaria como sócio. O livreiro se rendeu ao seu carisma e Leite ajudou a livraria a progredir, mas depois vieram as divergências em relação à expansão. Campos queria se mudar para um ponto visível, na principal avenida de Ipanema, com uma oferta mais plural de livros. Já o sócio preferia uma filial com proposta semelhante numa galeria da Tijuca. “Para mim, aquela fase de catacumba havia passado, mas ele era mais ligado aos movimentos políticos do que eu”, diz Campos.
Ambição semelhante à de Campos tinham os donos de outra pequena livraria de Ipanema que queria sair de uma galeria para ganhar visibilidade. Assim, ele deixou a sociedade com Aluízio Leite e se uniu na empreitada com os sócios da Dazibao – a jornalista Graça Neiva, o economista Chico Neiva e a bibliotecária Rita Lopes. Entre 1983 e 1986, a Dazibao, que foi aberta na avenida Visconde de Pirajá se tornaria referência no cenário cultural carioca. Em pouco tempo, os sócios abriram uma Dazibao no centro – lugar da tradição das livrarias no Rio. Localizada na Travessa do Ouvidor, a loja ficou com Rui Campos quando começaram a aparecer conflitos na sociedade. Em seguida, teve seu nome mudado para Livraria da Travessa.
Crítica aos jogos eletrônicos
Campos se refere à “Travessa da Travessa” para lembrar da primeira das seis lojas da rede – agora com nove sócios, todos amigos ou parentes de amigos. Outras duas livrarias serão inauguradas entre o fim do ano e o começo de 2014, em Botafogo e Ribeirão Preto. Uma expansão bancada com “o dinheiro do caixa”, diferentemente da Livraria Cultura, concorrente que, graças ao aporte de um fundo de investimentos, inaugurou duas filiais no Rio.
E como Campos vê o novo cenário de redes capitalizadas, vendas pela internet, livros eletrônicos? O mineiro acariocado nessa hora não nega as origens e desconversa sempre que o assunto é dinheiro. “Sou um irresponsável, apenas um formulador. Quem cuida do dinheiro é o Roberto”, ri e aponta para o sócio Roberto Guedes, que foi funcionário da Taurus e da Argumento antes de parar na Travessa da Travessa, numa época em que os livreiros cariocas até emprestavam seus vendedores “para dar uma força” aos amigos concorrentes. “Meu maior acerto foi me cercar de pessoas interessantes, incorporar sócios sem preocupações maiores”, diz Campos.
Como pai de um adolescente de 16 anos (tem outro filho de 30 anos do primeiro casamento), Campos se exalta na hora de criticar a venda de jogos eletrônicos, como faz a concorrente Livraria Cultura, no Conjunto Nacional, em São Paulo. “Espero nunca ter que vender. Aquilo é um absurdo porque vicia. Meu filho chegou a ficar dez horas seguidas jogando.”
Admiração pelas artes plásticas
As pilhas de livros na Travessa e o ambiente de “bagunça organizada”, valorizados desde o início pelo projeto dos arquitetos sócios Bel Lobo e Bob Neri, são motivo de orgulho, mas ele reconhece que quantidade e diversidade representam também o maior desafio. “Não é fácil. Qual comércio trabalha com 100 mil itens, como na loja de Ipanema?” Por melhor que seja a gestão de estoque, a saia-justa de não ter o livro procurado pelo cliente acontece. Vergonha, mesmo, é quando se trata de um lançamento alardeado pelos jornais, um clássico da literatura como Dom Quixote ou um título muito importante para alguma área do conhecimento. “Em antropologia, por exemplo, preciso ter A Interpretação das Culturas, de [Clifford] Geertz, mesmo que venda um por mês.”
A conversa sobre títulos faz a entrevista resvalar novamente para os aspectos românticos da profissão de livreiro. Ele lembra do tempo em que cada livro ganhava uma fichinha preenchida manualmente, e também de uma “história linda” da Gotham Books de Nova York, onde um cliente descobriu, dentro do exemplar comprado, uma fichinha de entrada com data anterior ao seu nascimento, e escreveu uma carta agradecendo à loja por abrigar um livro que esperou ele nascer, crescer e se interessar pela obra. “Claro que o Roberto não vai deixar esse tipo de coisa acontecer aqui”, brinca ele – e o sócio responde à provocação afirmando que pode, sim, “ter um livro da década de 80 por aí”.
Entre o romantismo e o negócio, Campos parece ter feito sua opção há tempos. Recorre ao folclore livreiro quando alega não ser um “daqueles leitores mais apaixonados” para não tomar partido por um livro – mesma justificativa do bibliotecário que não lia em O Homem sem Qualidades, obra de Robert Musil que Campos também não chegou a ler. Ao mesmo tempo, não deixa que a mítica em torno dos livros atrapalhe a adequação da empresa ao mercado, como foi com a criação do site da Travessa – que hoje vende tantos livros como uma loja física, incluindo um pequeno percentual de e-books. O empresário, que antes da mudança para o Rio ganhou seu “primeiro dinheiro” fazendo recreação em escolas com um grupo de teatro infantil, nutre especial admiração pelo universo das artes plásticas. “Eles enxergam o negócio como negócio. Estão criando no Rio eventos, galerias novas, coisas muito cariocas.”
Identidade carioca
Para ele, trata-se de um exemplo para o mercado do livro. “Essa história de pequeno livreiro idealista não tem cabimento. A maior prova disso é a dificuldade de se dar livro de graça. Às vezes nos procuram para achar solução para uma tiragem de 2 mil exemplares, patrocinada por uma instituição que proibiu a venda. Estão com 1.840 exemplares no depósito, sem ter o que fazer, porque não virou mercadoria. Mercado é maravilhoso, porque multiplica o negócio.”
Campos faz uma ressalva. “A Amazon é um caso de perversidade porque a lógica deles elimina a concorrência. Não gosto do discurso de pobre pequeno livreiro, sei que a concentração é inexorável, mas fico chateado quando as pessoas glamourizam só porque é tecnologia.”
Na briga por glamour, Campos aposta no charme e na identidade carioca. Como se não bastasse ter livrarias frequentadas, no mesmo dia, por personalidades como a cantora Marisa Monte e o presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, a Travessa está sempre na TV: a loja do Leblon serve às gravações do programa Globonews Literatura, de Edney Silvestre, enquanto a filial da Barra se transforma com frequência em locação de novela. “As pessoas entram e perguntam se ali é a livraria da novela”, diz Campos. “A gente responde que é a livraria da novela, do romance, da biografia…”
Site: www.travessa.com.br
******
Marta Barcellos, para o Valor Econômico