Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O show tem que continuar

Descem as cortinas, apagam-se as luzes, e a plateia das grandes feiras literárias, dos indicadores econômicos promissores e até dos megaeventos esportivos se esvazia. No palco, permanece a literatura brasileira, desconhecida, ainda, de muitos públicos, esperando por novos holofotes para dar vida longa a escritores e seus livros. Como garantir que o show continue? A pergunta é pertinente em um momento no qual o mercado editorial dá sinais de expansão no Brasil. Mais ainda, quando o mundo demonstra curiosidade em relação ao que acontece aqui, fisgado especialmente por iniciativas governamentais de internacionalização da literatura nacional e enfeitiçado por certo alinhamento de astros que hoje editores, autores e outros profissionais da cadeia se esforçam para entender – e não deixar a oportunidade passar.

Cada vez mais porta-vozes da indústria editorial enxergam no Brasil um quadro favorável à expansão internacional de obras brasileiras. Um consenso entre eles é a importância do Programa de Apoio à Tradução e à Publicação de Autores Brasileiros no Exterior oferecido pela Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Em 2010, ele foi reformulado e só então alcançou um ritmo constante, tornando-se um referencial para editores, agentes e tradutores nos quatro cantos do mundo. Em cada um deles, até nos países mais resistentes às crises econômicas, o meio editorial aparentemente carece de recursos para fazer frente à predominância de autores nacionais e à presença quase sempre massiva de traduções da língua inglesa.

É aí que entram as 422 bolsas de apoio à tradução concedidas nos últimos três anos, que só na Alemanha – sede da feira literária mais importante do mundo atualmente, a Feira Internacional do Livro de Frankfurt – resultou em mais de cem títulos publicados em alemão desde 2012.

Referência para a América Latina

“Imaginemos um livro de 250 páginas, que custa aproximadamente € 5 mil só para a tradução. Pode ser um obstáculo editá-lo, quando o pensamento geral é que a literatura do Brasil dificilmente vende, em comparação com concorrentes nacionais ou traduzidos do inglês”, explica Nicole Witt, da agência literária Mertin Litag, de Frankfurt, que representa aproximadamente 60 autores brasileiros em importantes editoras independentes, como Droemer, Suhrkamp e Aufbau. A maioria dos países que tem de romper barreiras para exportar suas histórias conhece bem essa equação, e o Brasil pouco a pouco aprende a matemática.

Outros esforços da FBN são apoiar a divulgação dos lançamentos e trabalhar com as embaixadas brasileiras, que têm se tornado mais presentes na vida de certos editores. É o caso do colombiano Juan Camilo Sierra, gerente-geral do Fondo de Cultura Económica, que observa um interesse crescente no Brasil, representado no catálogo do grupo mexicano presente em mais de dez países com títulos de ficção e não ficção. Na Colômbia, ele atribui essa tendência à celebração do Brasil na Feira Internacional do Livro de Bogotá do ano passado e ao respaldo que vem sendo dado aos editores ávidos por informação. “A meu ver, esse momento se deve em parte à grande aposta do Brasil para se promover. O país tem concertado sua presença em várias feiras. Nota-se o interesse do governo pelo tema do livro”, opina.

Ricardo Alonso, também colombiano e responsável pela editora Diente de León, vai além: “O programa de tradução do governo brasileiro é uma referência para toda a América Latina, para que os esforços institucionais de apoio à circulação de obras não fique na retórica.”

Feiras funcionam, mas se desperdiça muito

De Bogotá em 2012 a Bolonha e Paris em 2014, passando pela homenagem em Frankfurt em outubro, o Brasil está na moda, e as feiras certamente ajudam a promover a literatura nacional. Para uma genuína fomentadora da curiosidade alheia por autores latino-americanos como é a alemã Michi Strausfeld, um aspecto muito positivo é que, com as feiras, novos livros chegam às livrarias. “Até a edição deste ano de Frankfurt, havia um total de 60 títulos brasileiros traduzidos para o alemão, metade deles de Paulo Coelho. Esse número já dobrou, e há maior diversificação. É difícil atrair os olhares, por isso sou tão grata a homenagens à Argentina em 2010 e ao Brasil neste ano”, afirma a editora e autora de livros sobre literatura em português e em espanhol, hoje ligada à Fischer Verlage.

Sem resistir à frequente comparação entre Argentina e Brasil, o argentino Fabián Lebenglik se preocupa com os frutos que serão colhidos no pós-festa da feira alemã. Editor na Adriana Hidalgo, que publica autores brasileiros desde sua fundação, há 15 anos, ele observa: “A diferença entre as recentes homenagens de Frankfurt aos dois países é que a literatura argentina já era lida no mundo quando foi homenageada. Somos uma potência literária desde muito antes, e isso tem a ver com a nossa história de migrações e exílios. A Argentina sempre olhou mais para fora de suas fronteiras, enquanto o Brasil, por ser quase um continente, dá a sensação de se sustentar.”

Mesmo sem abalar a legitimidade de eventos literários e seus tributos, há quem questione a maneira de aproveitar toda a visibilidade que eles – sobretudo os mais globais – produzem. No caso da Feira Internacional do Livro de Guadalajara, a maior do mundo para as letras hispânicas, o editor mexicano Jorge Castellanos acredita que a presença brasileira em 2012 poderia ter sido mais marcante. “As feiras funcionam, mas se desperdiça muito também. Cerca de 20 autores brasileiros participaram separadamente de poucos eventos, em geral debates com um público reduzido. Da maneira que aconteceu a participação, acho que não deixaram uma marca”, diz o sócio da Elephas, especializada em traduções, que editou Cristovão Tezza e Luiz Ruffato no México.

Os “clássicos contemporâneos”

Mas nem só com apoios e feiras se constrói um cenário favorável. A atual imagem do país no exterior, de uma economia que não se saiu tão mal de uma crise global, sede de eventos catalisadores de investimentos como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, suscita a curiosidade de muitos e, de manchetes de jornal, o Brasil passa a ocupar o imaginário literário dos leitores mais qualificados.

Segundo a agente literária Marleen Seegers, holandesa radicada nos Estados Unidos, o Brasil anda sob holofotes ultimamente e assim será por alguns anos mais. “Tenho notado, nestes tempos de crise, que certos editores e leitores se cansaram dos usuais blockbusters em inglês e querem algo diferente. Autores brasileiros podem ser a resposta ao desejo deles de mudar”, arrisca a responsável pela 2 Seas Agency, que desde 2012 correpresenta brasileiros na Holanda e nos países nórdicos junto à agência brasileira Villas-Boas & Moss. Os mais curiosos terminam convidando o Brasil para uma homenagem, como fará a feira do livro de Gotemburgo, na Suécia, também em 2014.

Feiras e modismos à parte, previsões sobre o alcance literário do país começam, é claro, na literatura. O que procuram os editores internacionais na hora de publicar autores brasileiros? Para o italiano Lorenzo Ribaldi, da editora La Nuova Frontiera, é mais fácil apontar o que ele não busca. “Chega de realismo mágico e de bolañismo. Prefiro promover uma imagem do Brasil e da América Latina em geral que não afirme estereótipos”, diz o editor, cujo maior interesse é identificar “clássicos contemporâneos” e acompanhar as novas gerações de escritores.

Um título que “nunca sai do catálogo”

Publicando ao redor de 20 livros por ano e “trabalhando para um público de leitores fiéis”, Ribaldi já levou à Itália autores como o argentino Rodolpho Walsh, o peruano Julio Ramón Ribeyro e, entre os brasileiros, Ruffato e Adriana Lisboa.

Os clichês, porém, são difíceis de exterminar, especialmente quando muitos atuam a favor deles. Na visão de José Hamad, da agência Enrich & Hamad Literary Scouting, especializada em literatura em espanhol, o exotismo da América Latina continua vigente, e isso vale para o Brasil. Não exatamente aquele relacionado ao realismo mágico, mas um exotismo que ele define como territorial. “Títulos como Tropa de Elite e Cidade de Deus funcionaram bem aqui não tanto pelo drama social, mas pelos ambientes que retratam, ainda exóticos para o leitor europeu”, comenta Hamad, cuja relação com o mercado brasileiro se dá por meio da editora Objetiva. Bons representantes do jornalismo literário, gênero ao qual os latino-americanos costumam ser relacionados, também suscitam interesse, afirmam Ribaldi e Hamad. Da mesma maneira, novas traduções de “cânones” ainda não publicados ou esgotados merecem atenção, na opinião de Michi Strausfeld: “Não são só os novos nomes. Precisamos também de novas traduções.”

O fato é que nenhum editor qualificado, no rastro de novidades literárias ou comerciais, se furta de uma busca por qualidade. Para a agente literária Luciana Villas-Boas, “eles buscam da literatura brasileira o que buscam de qualquer literatura. Vozes próprias para narrar grandes histórias, que reflitam os dilemas e dramas existenciais do ser humano e, também, o sentido do movimento histórico, das forças sociais. No nosso caso, brasileiras, claro”. Por essa razão, ela cita Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, como um título que “nunca sai do catálogo” de suas editoras europeias.

Intimidade que vai além da literatura

Encontrar esses sellers, ainda que não best-sellers, é a tarefa titânica que recai sobre todos os envolvidos – brasileiros ou não – no processo tão artesanal que é a promoção internacional de uma literatura estrangeira. Em que pesem os séculos que há detrás do negócio do livro, esse é um mercado no qual o boca a boca pode ser responsabilizado por grandes e pequenos contratos. Mais que publicações como a revista Machado de Assis, iniciativa da FBN e do Ministério da Cultura para divulgar literatura brasileira em tradução, a revista digital e independente Emília, sobre leituras infantojuvenis, e até mesmo a britânica Granta, com sua recente e polêmica seleção “Os melhores jovens escritores brasileiros”, o caminho em que mais profissionais confiam é o do trato pessoal.

Barbara Epler, à frente da New Directions, que desde 1936 procura identificar “autores experimentais” nacionais e internacionais para publicação nos Estados Unidos, acredita na importância dos tradutores. Para ela, que publicou Clarice Lispector em inglês por insistência do “tradutor, escritor e amigo” Benjamin Moser – e hoje comemora os bons frutos dessa aposta bem-sucedida, quase como fez no passado com a publicação de Roberto Bolaño pela sua editora –, “é um processo muito orgânico de uma liga operando em cooperação”.

Já para Gabriella Page-Fort, gerente-editorial do selo de traduções da Amazon, a Amazon Crossing, acredita que às fontes pessoais e à pesquisa em publicações especializadas e até no KDP (Kindle Direct Publishing, a plataforma de autopublicação da empresa) se soma certa intimidade que vai além da literatura. “Dedicar-se a conhecer profundamente o que existe no país realmente amplia e equilibra a seleção de títulos”, diz a responsável pela escolha de dez autores brasileiros que sairão em inglês pela Amazon americana nos formatos digital, impresso e audiobook.

O show, a plateia e o palco

Nessa hora, poucos estrangeiros citam o Brazilian Publishers, programa que existe desde 2008 graças a uma parceria entre a Câmara Brasileira do Livro (CBL) e a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil). Mas, por intermédio dele, editoras nacionais associadas têm garantido sua presença nas feiras internacionais em busca de um aumento das exportações e até mesmo contado com o apoio de pesquisas de inteligência comercial e missões prospectivas que tentam identificar oportunidades de mercado.

De acordo com Karine Pansa, presidente da CBL, “as exportações de direitos autorais passaram de US$ 495 mil em 2010 para US$ 880 mil em 2011 e para US$ 1,2 milhão em 2012, um incremento de 143%”. No ano passado, Angola, Colômbia e Estados Unidos foram os três principais alvos do projeto, que rastreia permanentemente novos mercados.

Olhando por qualquer ângulo, é uma caminhada que pede continuidade. No campo estatal, esse é o maior desafio que se apresenta, enquanto a autores e editores cabe também a tarefa de ampliar a oferta de boas histórias. “O que o Brasil precisa é de mais livros interessantes. Os originais existem, a população é imensa, e tem muita gente de talento escrevendo. Mesmo que seja uma ridícula minoria, relativamente, tudo no Brasil é grande, e o que temos daria para fazer muito barulho. Os editores têm que publicar mais literatura brasileira, prospectar melhor”, pondera Luciana Villas-Boas. Se é promissor que o fluxo de informações tenha mudado, fazendo correr a voz do espetáculo brasileiro, uma coisa é ainda mais certa: não haverá show nem plateia, se for o palco a se esvaziar.

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Camila Moraes, para o Valor Econômico