“Klaxon cogita principalmente de arte. Mas quer representar a época de 1920 em diante. Por isso é polymorpho, omnipresente, inquieto, cômico, irritante, contraditório, invejado, insultado feliz.” Com essas palavras e algumas outras, uma carta assinada pela redação apresentava o periódico que viria movimentar a cena paulistana do modernismo entre 1922 e 1923.
Lançada três meses depois da Semana de Arte Moderna, a publicação mensal durou só nove números, mas foi suficiente para abrigar poemas, manifestos, polêmicas e ilustrações do grupo mais célebre de intelectuais do período: Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Graça Aranha, Oswald e Mário de Andrade, Sérgio Milliet, entre outros.
Passados 90 anos, um projeto do Instituto de Cultura Contemporânea (ICCo) com a Cosac Naify vai reeditar as revistas. Uma caixa com fac-símiles das nove edições chega às livrarias na quarta-feira (R$ 90,00), tornando acessível sua experimentação linguística e gráfica, o conteúdo vanguardista e seus princípios combativos. Entre suas pérolas figuram críticas de cinema de Mário de Andrade, ilustrações de Tarsila do Amaral, partituras de Heitor Villa-Lobos e publicidade com estética futurista. “A Semana foi um evento espontâneo e imprevisto. Não tinham uma proposta clara para levar, só sabiam bem o que não queriam”, lembra a pesquisadora Marcia Camargos, autora de Semana de 22. “Passada a Semana, precisavam sedimentar aquelas ideias e a revista surge muito nesse sentido.”
Relação familiar
Até agora, o periódico existia apenas no acervo de pouquíssimas bibliotecas e numa reedição dos anos 70 esgotada. Criada a partir dos originais mantidos na Biblioteca Brasiliana José e Guita Mindlin, da USP, a nova edição levou quase um ano para sair do forno. “A comemoração dos 90 anos da Semana funcionou como ponto de partida”, diz Daniel Rangel, diretor-artístico do ICCo e mentor do projeto. “Existe uma dificuldade de encontrar a Klaxon. Para vê-la na Brasiliana é preciso agendar, estar acompanhado pela bibliotecária. É um material que está protegido, mas era praticamente inacessível ao público.”
O processo envolveu escolhas editoriais. A principal foi a de manter as manchas e marcas que o tempo imprimiu nos originais. Outra foi a de grampear à mão cada exemplar, como se fazia na época. Além dos nove números, a caixa contém encarte de textos e um número extra – edição fictícia concebida pelos artistas Marilá Dardot e Fabio Morais a partir da fusão e sobreposição dos volumes da Klaxon original produzindo emaranhado gráfico e síntese visual.
Instituto privado, o ICCo é presidido por Regina Pinho de Almeida, descendente distante dos modernistas Guilherme e Tácito de Almeida. A relação familiar foi outro elemento que motivou a reedição, que tem patrocínio do banco suíço UBS. “Nem a Casa Guilherme de Almeida tinha os originais”, conta Rangel. Das 2 mil caixas, mil serão vendidas e mil distribuídas pelo UBS.
Mais debate do que combate
É a Casa Guilherme de Almeida, em Perdizes, que sediará o evento de lançamento na quarta. Aberto ao público, um sarau ao estilo modernista mistura leitura de poemas e canções, com participação de convidados ilustres como Augusto de Campos. Entre as canções previstas, está o “Hino dos Grupo do Gambá”, entoado nos festivos encontros dos modernistas na casa de Olívia Penteado.
Klaxon era feita com as despesas divididas entre os colaboradores, precária venda avulsa – Sérgio Buarque de Holanda era o representante de vendas no Rio – e praticamente nenhuma assinatura. Sem um corpo de redação fixo, pretendia-se um coletivo, embora coubesse a Rubens Borba de Moraes o posto de homem-chave, cuidando desde a parte burocrática até a articulação, e a Mário de Andrade a direção da turma que se reunia no escritório de Tácito de Almeida e Antônio de Carlos Couto de Barros.
“Entre os periódicos modernistas, Klaxon foi a primeira e uma das mais importantes. Surge num momento mais agressivo da vanguarda, numa espécie de continuidade dos combates da Semana”, diz Ivan Marques, autor de Modernismo em Revista, lançado neste ano. “Com exceção da Revista de Antropofagia, de 1928, os periódicos que vieram depois se concentram mais no debate do que no combate.”
A sina das revistas de arte
Sobre o fim da revista, Marcia lembra das dificuldades financeiras somadas a desentendimentos no grupo: “As discordâncias foram aparecendo, com alguns dos integrantes do grupo caindo à direita, outros à esquerda, já anunciando o rompimento que se daria mais adiante. A revista era difícil economicamente. Seria preciso um grupo muito coeso para que tivesse se mantido.” “A imaginação publicitária da revista, que fez história por seu arrojo, fracassou em seu intuito primordial: os anunciantes não gostaram das novidades e deixaram de contribuir”, escreve Marcos Augusto Gonçalves, autor de 1922: A Semana Que Não Terminou, no encarte de textos críticos da caixa.
O ICCo deve manter a parceria com a Brasiliana e reeditar um novo título, a ser definido. “O plano é reintroduzir à circulação documentos importantes da arte moderna e contemporânea brasileiras”, afirma Márion Strecker, diretora de comunicação do instituto, lembrando que a existência curta é uma espécie de sina das revistas de arte no Brasil. “Até hoje, foram pouquíssimas as que conseguiram passar do primeiro ano”, comenta Márion, que nos anos 80 coeditou a revista Arte em São Paulo, com Lisette Lagnado e Luiz Paulo Baravelli.
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Gabriela Longman, para o Valor Econômico