Aos 86 anos, o escritor Gabriel García Márquez está para a Colômbia assim como Carlos Gardel está para a Argentina ou Shakespeare para a Inglaterra. É sua mais perfeita metonímia. Desde o ano passado, porém, quando seu irmão Jaime revelou ao mundo que Gabo – apelido carinhoso do Nobel de Literatura de 1982 – padecia de demência senil, ele se mantém quase totalmente afastado da vida pública e só recebe, de forma esporádica, os amigos mais íntimos. Apesar desse afastamento, ou talvez por conta dele, a “gabolatria” ganha cada vez mais força na Colômbia.
Na última semana de novembro, colegas de Gabo se reuniram em Medellín para participar de um ciclo de palestras sobre jornalismo e literatura. Organizado pela Fundación Gabriel García Márquez para el Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI), instituição criada pelo escritor em 1994, o evento tinha como objetivo premiar as quatro melhores reportagens do ano e homenagear a figura e a obra de Gabo. A saudade dele – de seu convívio, de seu humor impiedoso e de suas certezas quase absolutas sobre a melhor forma de contar uma história – permeou todo o encontro. Mesmo ausente, ele esteve presente em diversas mesas de debate e foi assunto frequente nos cafés que atendiam ao público reunido na Plaza de la Libertad. “Gabo era incrível. Tratava seus revisores de um jeito curiosíssimo”, lembrou, com um sorriso amplo, o jornalista argentino Rodolfo Terragno, referindo-se involuntariamente ao amigo no pretérito imperfeito, assim como muitos outros por ali. “Certa vez, estávamos em Paris e Gabo recebeu um telefonema de um deles, criticando-o por ter escrito ‘águas áridas’ num texto qualquer. Para o revisor, aquilo era uma incongruência já que árido servia justamente para falar da escassez de água. Mas, com toda calma, Gabo explicou sua intenção literária e desligou o telefone. Depois, virou para o grupo que assistia à cena e deu uma de suas muitas lições: ‘Revisor de texto é igual sequestrador de filho. Temos que estar sempre ao lado deles’.”
Sob a proteção de Mercedes
O jornalista colombiano Nelson Fredy lembrou que a escrita sempre foi, para Gabo, “quase um vício”. “Gabo tinha obsessão por escrever”, contou Fredy, que, em 1999, ajudou Gabo a concluir uma de suas crônicas mais famosas, El enigma de los dos Chávez, publicada pela revista Cambio. “Naquela noite, nós estávamos em uma festa em homenagem a ele, mas Gabo de repente começou a repetir que precisava escrever, que precisava trabalhar. Saímos de fininho, sem sermos vistos, e ficamos na redação até o dia seguinte. Lá pelas 3h, ele me pediu que descobrisse se Chávez era arremessador ou base no beisebol. Às 4h, qual era a cor do uniforme do paraquedista venezuelano numa determinada cerimônia militar. Aí, faltando pouco para o amanhecer, olhou para mim e pediu, com o mesmo afinco, que descolasse um mamão. Ele não tinha comido nada e estava morto de fome.”
Ver Gabo hoje em dia é missão difícil até mesmo para amigos e familiares mais próximos. Talvez por ter se tornado mais seletivo ou por ter reduzido seu círculo mais íntimo de convivência. Desde os anos 1960, ele vive na Cidade do México, numa casa com redes na varanda erguida a poucas quadras de onde um dia moraram Frida Kahlo e Diego Rivera. Mas seu endereço é mantido no mais pleno sigilo por quem o conhece, atendendo a um pedido expresso de Mercedes Barcha, mais conhecida por seu apelido: “La Gaba”.
Casada com García Márquez desde 1958, Mercedes é quem cuida de tudo ao redor do criador de Cem anos de solidão, obra-prima de 1967 que alavancou a literatura latino-americana e o chamado realismo mágico no mapa mundial. É Mercedes quem vigia a alimentação e a vida social do escritor. É quem determina quem pode visitá-lo e a que hora deve fazê-lo. “Ela é a guarda pretoriana de García Márquez”, ilustra a jornalista colombiana Pilar Calderón, que em 2001 escreveu com Gabo uma série de artigos sobre os acordos de paz entre o governo do presidente Andrés Pastrana e os guerrilheiros do Exército de Libertação Nacional (ELN). “E ela exerce essa função muito bem. Age com força quando tem que agir e fica calada na maioria das vezes.”
O jornalista e escritor Eric Nepomuceno, tradutor de García Márquez para o português e grande amigo do colombiano, lembra que conhece Mercedes há exatos 35 anos. “Sobre a presença dela na vida de Gabo? Uma pequena indiscrição: ele sempre brinca, até hoje, dizendo que nós dois temos casamentos parlamentaristas. Somos chefes de Estado, e Mercedes e Martha (mulher de Nepomuceno), chefes de governo”, diz ele.
É dessa forma que Mercedes opina, por exemplo, sobre o rum “Maestro Gabo”, que foi lançado na Colômbia no fim de novembro, com tiragem limitadíssima de 100 mil litros, e parceria do governo de Antioquia (departamento onde fica Medellín). Na festa em que o rum “Gabo” foi apresentado à elite local, nem García Márquez nem Mercedes estavam presentes, mas o prefeito Aníbal Gavíria Correa e o governador Sergio Fajardo conseguiram abrir espaço em suas agendas para beber un trago largo em nome do escritor. Em suas intervenções, ambos lembraram que Gabo vendeu 30 milhões de exemplares de Cem anos de solidão e que foi traduzido para 35 línguas. Mas, nas pequenas rodas de conversa, o assunto era outro: o novo rum era gostoso, mas, na Colômbia, todos sabem que Gabo prefere uísque.
Margarita Márquez Caballero é prima de Gabo e participou tanto do ciclo de palestras quanto do lançamento do rum. Ela conta que trabalhou por 22 anos como secretária do Nobel de seu país. Durante um almoço em Medellín, Margarita lembrou os tempos em que passava a limpo as anotações de García Márquez e eliminava pequenos erros de ortografia. Durante cerca de duas horas, lamentou o fato de não vê-lo desde março. “Ele passou quatro meses em Cartagena no primeiro semestre deste ano, mas só nos vimos duas vezes”, conta ela, que dribla com grande elegância todas as perguntas sobre o grau de lucidez de García Márquez. “Posso dizer que Gabo continua lindíssimo. Um charme! Ainda veste branco dos pés à cabeça. Ele era um amigo, no sentido mais pleno da palavra, sabe? Agora, que falta ele vai me fazer?… Bem… ele já faz.”
Nepomuceno, por sua vez, nega que Gabo esteja distante. Conta que o viu em novembro do ano passado, no México, e que se comunica com a família (Mercedes, mais precisamente) a cada dois ou três meses. “Irei novamente (ao México) no começo de fevereiro, e já marcamos a cerimônia do chablis. Há muitos anos, cada vez que vou à casa dele levo um chablis de alto coturno como parte de um código que temos”, conta. “Não é bem verdade o sumiço de Gabo. Acho que ele deixou de se expor tanto, de estar sempre disponível e vulnerável. O que pode acontecer é que talvez existam íntimos que não eram tão íntimos assim…”
O escritor e tradutor prefere destacar a importância de García Márquez em diversas áreas: “Ele é uma figura emblemática não só na Colômbia e na América Latina, mas no nosso tempo. Basta ler o que ele escreveu e recordar sua participação na vida cultural e política do último quarto do século passado e nos primeiros anos deste novo século…”
Mas, apesar de a “gabolatria” ganhar ainda mais força com o afastamento de García Márquez do convívio social, não só dela vive a Colômbia. “Aqui também há espaço para o que chamo de ‘gabofobia’”,destaca o escritor colombiano Hector Abad, outro participante do evento em Medellín. “E, nesse grupo, estão os autores e jornalistas que acham que García Márquez e sua sombra são ou foram tão grandes que acabaram não deixando espaço para outros.”
Para alguns, “García Marketing”
Entre eles está o escritor Fernando Vallejo. Em maio deste ano, ele lançou o livro Peroratas, pela editora Alfaguara, e dedicou um ensaio inteirinho, intitulado “Um século de solidão”, à crítica de Gabo. Com um texto irônico, o polêmico Vallejo comenta o primeiro parágrafo de Cem anos de solidão. Lembra que a obra começa com a frase “Muitos anos depois, em frente ao pelotão de fuzilamento…” e pergunta, sem piedade: “Muitos anos depois de quê, Gabito? Da criação do mundo?” e, assim, segue tentando desconstruir o livro mais famoso de seu país.
Efraim Medina é outro na lista dos colombianos que contestam a onipotência de García Márquez – ou “García Marketing”, como ele prefere chamar. Porém, em vez de atacar os escritos de Gabo, mira no comportamento político que ele adotou nos últimos anos. Medina diz que até gostou quando o escritor virou ícone de seu país e impulsionou a literatura local, mas afirma que se decepcionou com Gabo logo em seguida, ao vê-lo se transformar “em comparsa de políticos, em defensor de ditadores assassinos, em suposto homem de esquerda que vai dançar na Casa Branca e em modelo de comerciais”.
No início dos anos 2000, García Márquez estreitou relações com o cubano Fidel Castro e chegou a fazer anúncios de TV em apoio a Andrés Pastrana, do Partido Conservador Colombiano, que governou o país entre 1998 e 2002. Quem se lembra disso repete o fato à exaustão. Quem o ama, por outro lado, faz um muxoxo diante dessa memória. E, assim, Gabo vai virando uma lenda viva.
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Em Aracataca, desdém pelo filho mais ilustre
Em 25 de junho de 2006, os 22 mil habitantes da pequena Aracataca, cidade situada no extremo norte da Colômbia, foram convocados para participar de um referendo. A pergunta proposta ao povo pelo então prefeito, Pedro Sánchez Rueda, era simples: “A cidade deve passar a se chamar Aracataca-Macondo?” Mas o que tinha sido pensado para servir de homenagem ao filho mais nobre daquela localidade – o escritor e jornalista Gabriel García Márquez – acabou revelando o desdém com que a cidade o trata. Apenas 3.596 pessoas se dignaram a ir às urnas e o plebiscito foi cancelado devido à forte abstenção.
Fundada em 1885, Aracataca vive, desde sempre, sob intenso calor. Quarenta e um graus é uma constante tão presente quanto a pobreza de seu povo. Quem circula por suas ruas vê muitas delas sem calçamento e escuta queixas aqui e ali sobre a escassez de hospitais. Em 2011, os adolescentes de Cataca (como é carinhosamente conhecida a cidade) tiveram as piores notas no exame nacional que dá acesso às universidades. Na terra do Nobel de Literatura da Colômbia, escrever corretamente em espanhol continua sendo problema crônico.
Foi naquele calor que Gabo nasceu, em 1927, e onde morou até completar oito anos. Foi lá também em que se inspirou para criar a fictícia cidade de Macondo e todos os personagens de sua obra-prima Cem anos de solidão. É verdade que, quando menino, ele circulava por uma Aracataca ainda pujante. Tinha uma filial da multinacional americana United Fruit Company (que cultivava bananas na região) e salas de cinema que ofereciam dois ou três filmes diferentes por semana.
Mas a empresa faliu na década de 1970 e deixou a cidade imersa numa profunda depressão econômica e envolta em violência. Não fosse o berço de Gabriel García Márquez, Aracataca certamente teria hoje uma posição ainda menos importante no mapa-múndi.
“Ingrato” e “mexicano”
Mas nem por isso a cidade é grata ao autor. Em rodas de jovens cataquenses, falar sobre os livros de García Márquez é algo fora de moda, apenas para velhos. Foram adolescentes, aliás, que há meses vandalizaram o mural que dá as boas-vindas a Aracataca e que mostra o rosto do escritor.
Por ali, não se lê Gabo. Nem no museu erguido em sua homenagem – reproduzindo a casa de seu avô, onde ele nasceu – há obras suas à venda. E uma reportagem recente do jornal El país de Calí trouxe à tona uma informação curiosa: em Aracataca, livros de Gabo são pirateados para atender aos turistas.
Para os poucos cataquenses que topam falar de Gabo, ele é hoje um “mexicano” – em referência ao fato de ter se mudado para a capital do México nos anos 1960 e de não pisar por ali desde 2007. Também há quem o classifique como “ingrato” – por supostamente não ter contribuído para o desenvolvimento da cidade ou a diminuição da pobreza de seu povo.
Porém, em sua mais forte defesa, saltam escritores e jornalistas colombianos como Alberto Salcedo Ramos: “Algumas pessoas aqui na Colômbia têm o hábito de exigir dos famosos aquilo que deveriam exigir do Estado. García Márquez não tem porque solucionar o atraso social de Aracataca. Isso é uma tarefa para o país”, pontua Salcedo Ramos, em entrevista por e-mail. “Através de seus textos, García Márquez já deu muito a seu povo. Tornou-o visível e o universalizou. Não se pode pedir mais a um escritor.”
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Cristina Tardáguila, do Globo; a repórter viajou a convite da Fundación Gabriel García Márquez para el Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI)