Duas coisas importantes aconteceram na vida de Stephen Hawking no ano de 1963, quando fez 21 anos: a doença que o atormentava foi diagnosticada como esclerose lateral amiotrófica, e Jane Wilde, que conheceu numa festa de réveillon na Universidade de Cambridge, aceitou o seu pedido de noivado. Os dois se casaram pouco depois, assim que ele conseguiu uma bolsa de pesquisa. Para todos os efeitos, não tinham muito tempo pela frente: a sobrevivência média das vítimas da ELA não passa de meia dúzia de anos.
O casal teve dois filhos num espaço de cinco anos, e um terceiro algum tempo depois. A essa altura, em 1979, a própria existência de Hawking era, em si mesma, um milagre, e ia contra todas as previsões médicas. A situação angustiava Jane, que, com medo de que o marido morresse de um momento para outro, propôs-lhe encontrar alguém que pudesse cuidar dela e das crianças assim que ele se fosse.
“Eu teria me oposto, mas também achava que iria morrer cedo e sentia que era necessário encontrar alguém que apoiasse as crianças depois disso”, escreve Hawking na sua autobiografia, Minha breve história (Editora Intrínseca). Assim é que Jonathan Jones, o organista da igreja local, mudou-se para um quarto no seu apartamento. É possível que a descrição deste estranho arranjo familiar não provoque mais do que um leve erguer de sobrancelhas entre os leitores ingleses, mas esta leitora brasileira achou a solução, ainda que prática, um tanto esquisita.
É verdade que nada é comum em Minha breve história, a começar pela forma como foi escrito. Há alguns anos, ele ainda conseguia formar frases indicando palavras ou letras entre as que apareciam na tela do computador fazendo pressão com um dedo sobre um sensor, mas com a perda deste movimento os engenheiros que desenvolvem os sistemas que usa tiveram que partir para uma nova solução. Hoje ele “escreve” apontando o que deseja com um movimento quase imperceptível do rosto, captado por infravermelho. É um processo extenuante; às vezes, Hawking é incapaz de produzir mais do que uma palavra por minuto.
Apesar disso, ou talvez por isso mesmo – quem escreve uma palavra por minuto tem que escolher o que diz com toda a cautela –, Minha breve história é direto, amável e cheio de graça. O livrinho é tão pequeno (142 páginas) quanto rico, e nos oferece uma rara oportunidade de encontro com o simpático ser humano que se esconde por trás da figura mítica do gênio entrevado.
Em tempo: em 1990, tendo constatado que a morte não estava assim tão próxima quanto imaginara, Stephen Hawking cansou-se da sua esdrúxula configuração matrimonial e saiu de casa. Foi morar com Elaine Mason, uma de suas enfermeiras, com quem se casou em 1995 e da qual se divorciou em 2006. Jane e Jonathan Jones, o músico, casaram-se em meados dos anos 1990 e foram, ao que consta, felizes para sempre.
Tal e qual
Lá pelo meio do ano, uma entrevista da Fox causou tumulto na rede (ver aqui). Não à toa. Nela, a primeira pergunta que a entrevistadora fazia ao seu convidado, o professor Reza Aslan, autor de Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré, era por que um muçulmano como ele decidira escrever sobre Jesus. O homem, perplexo, respondeu que é PhD em História das Religiões, é fluente em grego bíblico, há 20 anos estuda o assunto e, apenas por acaso, calha de ser muçulmano. Mas a repórter insistiu: por que ele estaria interessado em escrever sobre o cristianismo? Aslan respondeu, evidentemente exasperado: “Porque é a minha profissão! Porque vivo disso!”
Vocês acham que a anta que ocupava a bancada se deu por vencida? Que nada; o festival de asneiras continuou num crescendo por muitos e muitos minutos, no que foi, certamente, um dos momentos televisivos mais constrangedores do ano. Agora mesmo, assistindo à entrevista de novo para escrever esta coluna, fiquei, mais uma vez, com uma vontade louca de me esconder debaixo do sofá, tamanha a vergonha alheia.
A partir dessa entrevista espantosa, as vendas de Zelota dispararam, e o livro acabou nas listas de best-sellers, onde continuou uma carreira de sucesso e de escândalo. Sucesso porque conta uma ótima história, muito bem escrita; escândalo porque não faltam imbecis à cata de cabelo em ovo em qualquer parte do planeta. Segundo depreendi de resenhas de historiadores, nada do que Aslan diz é particularmente novo para quem é do ramo. Tentando, na medida do possível, separar fato de ficção, ele traça um perfil de Jesus bastante diferente do profeta pacifista e afastado das questões políticas do seu tempo: o seu reino era, e muito, daquele mundo.
Pessoalmente, acho impossível, às portas do ano de 2014, chegar a qualquer conclusão factual sobre um homem que viveu há tanto tempo e que, logo após a sua morte, já era alvo de lendas. Mas Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré (Editora Zahar, tradução de Marlene Suano) é uma leitura fascinante, sobretudo pelo que revela da vida na Palestina à época da dominação romana, a respeito da qual imaginamos que sabemos tanto, mas conhecemos tão pouco. Este não é um livro para quem acredita que a Bíblia é a palavra de Deus, tal e qual, e que ainda vê no Cristo ariano de Dürer um perfeito retrato de Jesus, mas é excelente para todos os demais, sejam cristãos, judeus, muçulmanos, ateus ou jainistas.
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Cora Rónai é colunista do Globo