O modernismo, na opinião de Mário de Andrade – presença constante e avassaladora nas revistas literárias da década de 1920 –, foi “um tempo de festa”, “essencialmente destruidor”. Alegre, imoderado, dionisíaco, o movimento teria sido, com sua fúria, “até destruidor de nós mesmos”. Não se limitando à luta contra os adversários “passadistas”, o espírito polêmico da vanguarda, segundo o escritor paulista, havia sacrificado a própria produção artística da geração de 1922.
Ditas em tom de mea culpa na famosa conferência de 1942 sobre os 20 anos do movimento modernista, essas palavras um tanto exageradas reaparecem alguns anos depois na boca de outra figura central daquele grupo. Em sua Apresentação da poesia brasileira, Manuel Bandeira afirma que o modernismo se caracterizou, de fato, por uma “atitude destruidora”. Discordando, porém, do juízo severo de Mário, o autor de “Libertinagem” adverte que não faltou a nenhum dos poetas “o sentido grave da vida e do momento social que viviam”.
À luz dessa justa ponderação de Bandeira, podemos reconsiderar um pouco a história fulminante da Klaxon. Na eclosão do chamado “modernismo heroico”, a revista foi vista principalmente como a hora do barulho, do combate e da destruição.
Ousadia gráfica
Lançada em São Paulo ainda no calor da Semana de Arte Moderna, Klaxon teve curta duração: seus nove números, custeados pelos próprios redatores, circularam entre maio de 1922 e janeiro de 1923. Foi não apenas a primeira publicação da vanguarda brasileira, mas também a mais ousada e experimentadora, tanto no conteúdo quanto no plano das formas. Essa ousadia pode ser conferida pelos leitores de hoje na caixa especial recém-lançada pela Cosac Naify, que contém as edições fac-similares de todos os exemplares da publicação.
As inovações de caráter gráfico-visual tornaram a Klaxon uma revista única – longe do formato mais tradicional e sisudo que seria adotado em seguida por outros periódicos, como Estética (1924), do Rio de Janeiro, e A Revista (1925), de Belo Horizonte. A capa, de autoria do poeta Guilherme de Almeida, causou estranheza pela valorização da plasticidade das letras e pela distribuição incomum das palavras. No miolo, a titulação dos textos e a numeração das páginas, com o uso de tipos grandes, à maneira dos cartazes, imprimiam um caráter de urgência e trepidação às mensagens de Klaxon. Os anúncios do chocolate Lacta e do guaraná Espumante, igualmente criados por Guilherme de Almeida, pareciam antecipar procedimentos da poesia concreta. Eram tão inovadores que irritaram os próprios anunciantes. Em protesto contra a decisão das empresas de retirar os anúncios, a redação de Klaxon, com bom humor, recomendou aos leitores: “Não comam Lacta nem bebam guaraná”.
Blagues e provocações constituem a essência do “mensário de arte moderna”. A irreverência se faz presente sobretudo nos ataques aos opositores do modernismo e nos textos críticos – como os da seção “Luzes e Refrações”, a mais polêmica da revista – em que os klaxistas procuram identificar e disseminar, na expressão de Mário de Andrade, “o espírito de modernidade, que o Brasil desconhecia”.
O título da publicação (que significa buzina) já revela de saída o desejo de inserção na vanguarda internacional. A ambição do grupo não era apenas atualizar as artes no Brasil, mas tornar o nosso modernismo conhecido fora do país. Entre as colaborações estrangeiras (há textos em quatro línguas), destacam-se os poemas do ultraísta espanhol Guilhermo de Torre e do futurista português Antonio Ferro, ambos pregando “a beleza da velocidade” e outros símbolos do mundo moderno. A propósito: o nome Klaxon foi considerado “estrambólico” pelo escritor Lima Barreto, pois lhe deu a impressão de que tinha em mãos uma revista de propaganda de automóveis americanos. Pior ainda foi a reação de um crítico do jornal O Imparcial, a quem a capa fez pensar que se tratava de “reclame de purgativo enérgico”. A resposta dos redatores de Klaxon foi implacável: só mesmo o uso constante desses medicamentos poderia nos livrar “dessa alimentação pesada que há 30 ou 40 anos os nossos atuais acadêmicos vêm cozinhando para nós”.
A crítica, por vezes violenta, voltava-se contra o passadismo, e não contra o passado, seus mestres, suas tradições. Apesar do nome, Klaxon afirmou uma posição contrária à iconoclastia do futurismo. Diferença que se revela claramente já no manifesto da revista (escrito por Mário de Andrade), por meio da ênfase dada a seu “ímpeto construtivo”. Logo no primeiro parágrafo lemos: “É preciso refletir. É preciso esclarecer. É preciso construir. Daí, Klaxon.” E as últimas palavras do texto são: “Era de construção. Era de Klaxon.”
Produção artística e debate crítico
Por trás do movimento “essencialmente destruidor”, havia, pois, desde os primórdios, um imperioso desejo de construção. Dele é testemunha a vigorosa produção literária e artística exibida em Klaxon – poemas de Mário, Bandeira, Menotti del Picchia e Guilherme de Almeida, entre outros, desenhos de artistas como Victor Brecheret, Di Cavalcanti, Zina Aita, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, partitura musical de Villa-Lobos etc. – num panorama do que a vanguarda vinha produzindo entre nós. Outra prova do esforço de construção é o debate crítico inaugurado em suas páginas, ao qual dariam continuidade as demais revistas da década de 1920, numa busca contínua de depuração das ideias modernistas e de entendimento do que significava, para além do campo estético, a chegada da modernidade ao Brasil.
Tempo de festa? Com sua vocação para a reflexão e a teorização, “Klaxon” não deixa dúvidas. O modernismo, longe de ser um brinquedo, um incêndio, um gesto de atirar pedras – como acusaram tantas vezes seus próprios representantes –, foi um movimento organizado, um período de estudos, amplos esforços e intensa troca de ideias. Numa palavra, uma “era de construção”.
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Ivan Marques é professor de Literatura Brasileira na USP, autor de Modernismo em revista: estética e ideologia nos periódicos dos anos 1920 (Casa da Palavra) e Cenas de um modernismo de província: Drummond e outros rapazes de Belo Horizonte (Editora 34)