Há 20 anos, um presidente de empresa que fizesse parte da lista das maiores organizações do planeta tinha uma probabilidade de 36% de manter seu emprego pelos próximos cinco anos. Há 15 anos, essa probabilidade havia caído para 25%. Em 2005, o mandato médio de um CEO nos Estados Unidos havia se reduzido a seis anos. Na década de 1970, existiam 89 países governados por ditadores. Em 2011, esse número caiu para 22, o que fez com que a democracia chegasse a mais da metade da população mundial. A grande recessão provocou queda de 36,3% na renda do 1% dos americanos mais ricos.
Os Estados soberanos, embora tenham duplicado em número desde o fim da Segunda Guerra Mundial, agora têm como rivais, além de outras nações, organizações transnacionais e não-governamentais. Elas foram imprescindíveis, por exemplo, para a criação do Sudão do Sul, em 2011, o país mais novo do globo.
Nas ruas, manifestações derrubam reajustes de passagens de ônibus, como aconteceu em São Paulo, e ditaduras de décadas. Com a ajuda da internet – sobretudo, das redes sociais –, também o consumidor impõe sua vontade.
A destruição das barreiras tradicionais
Em suas frequentes viagens pelo mundo, Moisés Naím foi recolhendo dados como esses que, quase sempre, aparecem dispersos no noticiário, nos textos acadêmicos ou no dia a dia desse privilegiado observador das relações internacionais. Editor da revista Foreign Policy, ex-ministro da Indústria e Comércio da Venezuela (foi nomeado com 36 anos) e ex-diretor-executivo do Banco Mundial, Naím é constante interlocutor de chefes de Estado, ministros, chanceleres ou CEOs de gigantes multinacionais. Em suas conversas, costumava ouvir reclamações, dificuldades e lamentações daqueles responsáveis por tomar decisões capazes de influenciar um grande número de pessoas. Ou assinar papéis cujo conteúdo obrigava cidadãos a agirem de determinada forma. Aos poucos, Naím percebeu que tantas lamúrias tinham menos a ver com a famosa crise de liderança e muito mais com o desdobramento de uma nova tendência global. “O poder está em degradação”, concluiu.
Nascia assim seu novo livro, O Fim do Poder (Editora Leya). Em 392 páginas, Naím faz uma análise sobre o exercício do poder no século 21. Segundo ele, é tentador avaliar essa tendência apenas pensando em internet ou nos conceitos de relações internacionais (soft power contra hard power). Mas essas seriam visões incompletas. Naím prefere analisar os micropoderes, a destruição das barreiras tradicionais que protegiam o exercício do poder e as mudanças demográficas, geopolíticas e econômicas que derrubaram a hegemonia de marcas, religiões e partidos políticos por meio de três revoluções. A do “mais”, a da “mobilidade” e a da “mentalidade”. Nesta entrevista ao Valor, concedida, por telefone, de Madri, Naím explica cada uma delas.
A grande recessão teve um efeito corretivo
Por que o poder acabou?
Moisés Naím – O poder não acabou. O que ocorre é que está muito mais difícil exercê-lo. Há hoje diversas ameaças àqueles que exercem o poder, de todas as formas. Ele está sob riscos. Suas barreiras de proteção já não funcionam como antes. O poder está cada vez mais fraco, transitório e restrito. O poder está em degradação. É difícil exercê-lo e muito mais fácil perdê-lo. Ao mesmo tempo, é mais fácil alcançá-lo. Isso faz com que o poder se torne cada vez mais fraco e efêmero. O poder não está mais baseado em tamanho ou na tradição ou nas regras. O poder está se dispersando cada vez mais e governos, exércitos, empresas, sindicatos, partidos políticos estão, cada vez mais, enfrentando surpreendentes rivais muito menores.
Quais as consequências dessa degradação do poder para a democracia representativa?
M.N. – São positivas. Essas mudanças estão permitindo uma maior participação. As pessoas são capazes de interferir nos processos de decisão. Isso pode fortalecer a representação popular. Cada vez que vão às ruas, as pessoas percebem que conseguem enfrentar o poder que antes parecia invencível. Percebem que os poderosos estão em situação vulnerável, estão enfrentando restrições ao exercício do poder, ou seja, há limites para convencer as pessoas a agirem de determinada maneira.
O poder mais propagado em tempos de crise é o do capital financeiro. O senhor vê ameaça também a essa espécie de poder?
M.N. – Sim. Enquanto estamos falando aqui, estão sendo divulgadas novas regras mundiais que estabelecem multas para as operações financeiras. Evidentemente, ainda há muito poder concentrado no capital financeiro. Mas sua atuação está sendo reduzida por uma nova mentalidade. Até mesmo o tão mencionado 1% dos mais ricos dos Estados Unidos não está imune às repentinas mudanças de riqueza, poder e status. Essa parcela perdeu, segundo pesquisas, 36,3% de sua renda. Apesar de a desigualdade de renda ter aumentado muito, a grande recessão também teve um efeito corretivo, pois afetou mais que proporcionalmente a renda dos ricos. Outra questão é que os atores que atuam no setor financeiro são outros. Hoje, os bancos tradicionais dividem mais o poder com novos e ágeis hedge funds.
Efeitos da revolução da “mentalidade”
No livro, o senhor fala de revoluções que implicam a degradação do poder e que tiveram tanta influência nesta tendência quanto a internet. Poderia resumi-las?
M.N. – São três revoluções. A revolução do “mais”, da “mobilidade” e da “mentalidade”. A primeira se dá porque nunca viveram tantas pessoas no planeta. De 1950 a 2050, a população global terá quadruplicado. Além disso, essa população provoca o aumento de tudo: número de países, crescimento acelerado de todos os indicadores relacionados à condição humana – expectativa de vida, nutrição, educação, renda, violência, enfim, tudo. É uma era de abundância. Esse aumento populacional, assim como sua estrutura etária, distribuição geográfica, longevidade, saúde, seus maiores níveis de informação e educação e consumo, têm amplas repercussões na obtenção e no uso do poder. A segunda revolução se dá porque essas pessoas têm mais facilidade para circular e isso dificulta o controle sobre elas. Essa mobilidade altera a distribuição de poder tanto dentro de cada comunidade como entre os diferentes grupos sociais. Segundo a ONU, há 214 milhões de migrantes no planeta, um crescimento de 37% nas últimas duas décadas. A terceira revolução, da “mentalidade”, é uma espécie de consequência das duas primeiras. A partir do momento que o indivíduo tem mais informação, mais conhecimento, mais saúde, tem também mais expectativa. Tem outra visão do mundo.
Isso explicaria o momento de manifestações e protestos?
M.N. – Com essas revoluções surgiu uma nova classe média em alguns países. A questão é que, enquanto nos países em desenvolvimento a classe média está se expandindo, na maioria dos países ricos ela vem encolhendo. E tanto as classes médias que crescem como as que encolhem alimentam a turbulência política. As classes médias acossadas tomam as ruas e lutam para proteger seu padrão de vida, enquanto as classes médias em expansão protestam para obter mais e melhores bens e serviços.
E colocam o poder tradicional e institucional em xeque.
M.N. – Cada uma dessas revoluções faz com que as barreiras que permitem aos poderosos se protegerem de novos rivais e preservar o poder já não os protejam tanto quanto antes. As barreiras estão cada vez mais fáceis de derrubar, contornar e sabotar. Quanto mais contato temos uns com os outros, mais são ampliadas as aspirações. Os efeitos da revolução da “mentalidade” sobre o poder têm sido variados e complexos.
Liberdade de expressão
Os poderosos estão com medo ou não percebem o que está se passando?
M.N. – Alguns não percebem. Vivem um momento ilusório ou presos a padrões que estão sendo derrubados. Mas muitos governantes estão atentos perceberam as mudanças.
Por que o senhor acredita na relegitimação dos partidos políticos?
M.N. – A tendência é para os partidos mais tradicionais perderem o poder e serem substituídos por partidos que surgirão com as transformações, estarão mais ligados ao novo momento e, portanto, capazes de restabelecer de certa forma o diálogo e a representatividade democrática. Embora as imperfeições dos partidos políticos sejam muitas vezes inquestionáveis, seu desaparecimento implica a perda de importantes reservatórios de conhecimento muito especializado, que não é fácil replicar pelos novos grupos políticos ou mesmo pelos indivíduos carismáticos recém-chegados à política.
O que os partidos deveriam fazer para ter esse reencontro com o eleitor?
M.N. – Os partidos políticos devem restabelecer a relação com os movimentos sociais, as organizações não governamentais, instituições nas quais o cidadão ainda encontra consonância com suas aspirações em defesa de temas como serviços públicos, liberdade de expressão, ambiente. Essa agenda de aspirações deve ser incorporada aos partidos e ao surgimento de novas lideranças em algum momento.
Exemplo mexicano
O senhor diz que “os grandes de sempre” perderam o poder para os micropoderes. O jornalismo chamado de ativista seria um micropoder?
M.N. – Sem dúvida. Julian Assange, Edward Snowden são exemplos desse micropoder. A WikiLeaks dificulta o exercício do poder. Em poucos setores o poder mudou de forma tão drástica e rápida quanto no da informação e das comunicações. Mas o micropoder não está apenas na capacidade de desvendar, revelar. Ele é concorrente dos “grandes de sempre”. Exemplo melhor são as igrejas pentecostais. Elas também provocam uma degradação do poder tradicional e ajudam a confirmar a tendência de uma reconfiguração mundial. Os micropoderes limitam a atuação dos mega-atores.
Se todos têm chances mais igualitárias, o senhor concordaria com a tese do “mundo plano”, de Thomas Friedman?
M.N. – Há similaridade. Mas minha análise dos micropoderes tem outras características.
Seu outro livro, Ilícito, de 2005, era uma análise sobre o poder do crime organizado, da pirataria, da economia subterrânea. Esse poder também está enfrentando dificuldades?
M.N. – Sim, claro. Veja, por exemplo, os cartéis do México. Eles perderam muito o poder. Se, por um lado, o crime também se beneficia de um avanço tecnológico, por outro sofre concorrência, como todos os que têm seu poder degradado.
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Jorge Félix, para o Valor Econômico