Que inferno é o futuro. Mas Mae Holland não se dá conta disso, pelo contrário. “Meu Deus, é o paraíso”, diz, ao conhecer o campus de seu novo emprego, um gigante da internet chamado O Círculo. Prédios de vidro e aço, pés-direitos infinitos, quadras de vários esportes, refeitórios com chefs internacionais, e slogans por toda a parte. “Sonhe”. “Participe”. “Respire”.
Mae está a ponto de mergulhar em um pesadelo totalitário, mas não se pode culpá-la por não perceber. Ela vem de um trabalho terrível, na companhia de gás e luz da cidadezinha onde vivia com os pais. Conseguiu entrar no Círculo por intermédio de uma amiga de faculdade, a glamourosa Annie, alta dirigente da Gangue dos 40, os executivos mais influentes da organização. Gangue dos 40 é uma clara alusão à Camarilha dos Quatro (Gang of Four), o grupo antirreformista comandado pela viúva de Mao Tse-tung na China dos anos 70. Não será a primeira nem a última referência a regimes autoritários em The Circle, novo romance do americano Dave Eggers, lançado no fim de 2013 nos EUA. Mae é sua protagonista.
O livro se passa em um futuro próximo. Em que Santiago Calatrava ainda faz projetos (no caso, uma fonte no tal campus), mas em que Google e Facebook foram tornados obsoletos pelo Círculo. Isso porque o Círculo, comandado por executivos conhecidos como Os Três Sábios, criou um sistema universal de uso da web, unificando todas as contas de e-mail, perfis de redes sociais, transações bancárias e de comércio. Controle absoluto.
Uma organização interessada em fazer o bem
Dave Eggers, de 43 anos, vive na região de San Francisco. Lá montou um pequeno império indie, que inclui a editora McSweeney’s e a revista literária Believer. Como apontaram alguns resenhistas estrangeiros, faz parte da última geração de autores a firmar reputação nos meios de papel, antes de a internet crescer tanto. Não surpreende que venha de alguém como ele – com esse histórico pessoal e vizinho do Vale do Silício – uma visão tão ácida das contradições da rede.
Mae começa no atendimento a anunciantes. Sua fama de eficiente (e também de amiga de Annie) logo se espalha. Até que um dia é chamada para uma conversa. Seus superiores querem muito mais. Mae, por que você não participa de nossas redes sociais internas? Não gosta de caiaques? Por que não faz parte das nossas comunidades de interessados no esporte? E na nossa rede de mensagens curtas, por que não escreve? O que você fez no fim de semana? Nenhuma foto, nenhum vídeo? Mae, você tem de participar, compartilhar, dividir, comentar! Nasce então uma nova Mae Holland, 100% dedicada ao Círculo. Mal dorme. Muda-se para o campus. Não tem tempo de ir para casa.
Muito comparado a 1984, The Circle tem uma diferença fundamental: o sistema opressor imaginado por George Orwell vem do Partido, de um governo totalitário; já o Circulo é uma organização supostamente interessada em fazer o bem.
As “vozes da razão”
Por que não instalar em todos os pontos do planeta câmeras invisíveis de altíssima definição? Se todo mundo souber que está sendo vigiado o tempo todo, não haverá mais crimes! E por que não implantar chips em todos os recém-nascidos, para que se saiba a localização de todas as crianças do planeta, inibindo a ação de pedófilos? Mae se entusiasma, ganha destaque, acaba se aproximando dos Sábios. Passa a portar uma das pequenas câmeras. Transmite 100% de sua vida, em tempo real. Supera a amiga Annie em prestígio.
Duas vozes tentam dissuadir Mae. Uma é Mercer Medeiros, um ex-namorado que nunca saiu da cidadezinha onde cresceram. Não quer saber de vida online e chama de “seita” o Circulo e seus adeptos (quase 100% da humanidade). A outra vem do misterioso Kalden, que aparece às vezes no campus, diz que trabalha no Circulo, transa com Mae, e tenta convencê-la a interromper esse “pesadelo totalitário”.
Nessas duas “vozes da razão” me parece estar a principal deficiência do romance. Falam de maneira condescendente, como se lessem um manifesto, parecem bonecos de ventríloquo do autor. Também há várias situações implausíveis e personagens caricatos.
Mas, a meu ver, The Circle se sustenta pelo forte viés antiautoritário, e por uma visão crítica, mas não passadista, do papel da internet. O final é perturbador. Que saia logo no Brasil.
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Álvaro Pereira Júnior é colunista da Folha de S.Paulo