Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O poder político, o mundo real e a sociedade

Em toda história da humanidade, os homens aceitaram se organizar de maneira a exaltar alguns e inferiorizar outros. Mas se o poder é uma relação desigual, como podem os dominados se permitir serem subjugados? O poder não é agressivo ou escancarado. A hierarquia se estabelece nas pequenas coisas do dia-a-dia, nas subjetividades às quais somos expostos.

O livro O poder em cena, de Georges Balandier (1982), discute as maneiras pelas quais o poder político comanda o mundo real e a sociedade, através da manipulação do imaginário social dos indivíduos. Segundo o autor, são as aparências sociais que promovem a hierarquia do mundo real. O poder é um jogo dramático que sempre existiu em nossa sociedade, em todos os tempos e lugares. Porém, cada sociedade desenvolve sua própria dinâmica e seus próprios papéis sociais. Desta forma, por trás de toda forma de poder, existe a teatrocracia. A arte do governo é a arte da cena. Balandier usa a obra O Príncipe (1532), de Maquiavel, para complementar suas afirmações. Para ele, o soberano deve enganar seus súditos para ser aceito. Ele não impõe diretamente o seu poder, mas sim, faz com que as pessoas sintam que estão se permitindo dominar e que, por isso, compartilham certa parcela – ilusória – de poder. Para ser aceito como mandante, o soberano dramatiza e conquista o coração de seus súditos, ganhando sua confiança.

Um exemplo de guerra de poder que comprova a necessidade de investir no imaginário e não somente na força é a guerra entre URSS e EUA. Enquanto a União Soviética investiu em armamento, os Estados Unidos se concentrou em propaganda e imaginário social.

O merecimento do poder

Outro artifício usado neste jogo de cena é a história da dada civilização. As sociedades costumam usar o passado como forma de atestado do presente. Porém, o passado também está em constante mutação. Sua interpretação pode ser feita e refeita, dada uma determinada necessidade do poder atual. As encenações são fundamentais para a construção de um sentido e para a organização das sociedades. É através das representações que muitos líderes são tidos como heróis. A ideia de um homem comum, que teve um pouco de sorte e ascendeu ao poder, garante merecimento ao poder adquirido. O líder deve ser dotado de virtù e fortuna, ou seja, além de possuir os talentos necessários, ele conta com algo sobrenatural, como a sorte, para conquistar o poder. Isto gera identificação e causa uma sensação de meritocracia por parte de um líder.

Na democracia, o poder depende da persuasão para ser conquistado. Os meios de comunicação de massa levam as oportunidades de dramatização a um nível extremamente elevado. No nazismo, o imaginário foi manipulado em uma instância que transformou toda uma população em figurantes fascinados pelo drama executado por um senhor absoluto de poder. Neste caso, é formado um imaginário oficial – ditado por um governo – que mascara e recodifica a realidade.

Mas não basta legitimar este poder. O drama e a encenação são exercícios diários que devem estar presentes para fazer a manutenção da hierarquia, através de recursos básicos, como comemorações, manifestações, execuções e monumentos. Nesta última categoria, o apelo visual é muito utilizado através de peças arquitetônicas que irão ostentar o tamanho do poder de seu líder. Além disso, o poder veste o rei e tudo que o cerca. Suas roupas, adornos, palácios e o que ele come. Tudo irá qualificar o seu poder e o merecimento do mesmo.

Justificativa para a subjugação

A ridicularização também é utilizada como uma profilaxia do poder. Existem algumas figuras que zombam do poder, desmistificando-o. Atualmente, este papel é desempenhado pelas sátiras, charges e pelos quadros de humor a respeito de um político. Isso o torna mais humano e menos perigoso. A partir daí, surge um novo conceito: A ordem e a desordem. Se o poder é feito para organizar a sociedade, seria a desordem uma maneira de combater a hierarquia?

Muito pelo contrário. A inversão da ordem não é o seu contrário, é apenas mais um mecanismo de definição de camadas sociais. Os superiores e inferiores são classificados como bem e mal. Aqueles que desobedecem à ordem são demonizados, atestando os superiores como pertencentes do bem. A ordem e a desordem estão atreladas em um ciclo sem fim. Pois se a contraordem vencer, ela apenas será a nova ordem, perdendo sua caracterização de oposição. Como exemplo temos a inquisição política que lutou contra o poderio religioso e, atualmente é a nova ordem, deixando de ser a classe de inversão.

Além disso, a desordem é necessária para que o poder possa se impor. Inclusive podendo ser permitida ou inserida pelo próprio poder, de maneira a saciar o desejo de anarquia dos súditos – vide cerimônias como o carnaval. É através deste mecanismo, das encenações soberbas, que o poder e a hierarquia são instaurados e mantidos em nosso cotidiano desde sempre.

Isso porque os dominados não aceitariam se subjugar sem uma justificativa. É preciso que se faça um sentido, é preciso que se estabeleça um significado, um por que – mesmo que dissimulado – de determinada pessoa assumir um cargo de líder. Somente desta maneira que os dominados se tornam passíveis.

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Nayara Luchetti é jornalista, Londrina, PR