Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

‘Um doce radical’

O governo estadual decide remover uma favela inteira. Os moradores, negros, pobres, analfabetos e que não compravam jornais, reagem à ideia de morar a dezenas de quilômetros do local onde viviam. O governador ameaça prender quem resistir. Um padre os apoia.

O jornal mais importante do país passa a cobrir o conflito com isenção, ouvindo todos os agentes envolvidos e tomando cuidado para não rotular os favelados como baderneiros. O próprio chefe de redação assume a função de repórter e vai à favela, escuta os moradores, é fotografado sujando os sapatos na lama das ruelas, conversa com o padre e defende abertamente as negociações, que acabam com o recuo do governo.

Não, os dois parágrafos acima não são resumo do roteiro de um filme nem a sinopse de um romance. Tudo isso aconteceu mesmo. E no Brasil. Os tempos eram outros. O jornal era o extinto Correio da Manhã e o chefe de redação chamava-se Antonio Callado.

Essa e outras histórias do romancista, autor teatral e um dos mais corajosos jornalistas brasileiros está contada de forma breve, porém com fartura de imagens, em Antonio Callado – fotobiografia (Cepe Editora).

O título do livro também poderia incluir a palavra afetiva. Seria mais realista até. O trabalho de preparação dos textos, seleção de fotos, organização de documentos foi realizado pela viúva, a também professora de Jornalismo Ana Arruda Callado, com ajuda de sobrinhos, da filha e dos netos do escritor. Não é preciso ser um expert para perceber o carinho e a saudade transbordando das mais de 450 páginas do volume.

No episódio que abre esse texto, os 1.100 moradores de Braz de Pina contaram com a ajuda do sacerdote José Sainz Artola, pároco da Igreja de Santa Edwiges, para enfrentar a violência da polícia de Carlos Lacerda, governador do antigo estado da Guanabara.

Antonio Callado comprou a briga, e o jornal que ele chefiava passou a denunciar os espancamentos, as prisões e a ação dos falsos assistentes sociais que constrangiam a comunidade, na esperança de convencê-los a morar no subúrbio de Bangu, a mais de 20 km dali. Obrigado a enfrentar o Correio da Manhã e seu respeitado diretor de redação, Lacerda acabou desistindo e Braz de Pina tornou-se a primeira favela da América Latina a ser urbanizada.

A atuação de Callado nesse episódio não foi um caso isolado em sua biografia. Pelo contrário, é apenas um exemplo do seu compromisso com os mais pobres, os negros, os índios, os trabalhadores rurais. E de como seu talento para escrever e comandar redações foi colocado a serviço da luta por uma sociedade mais justa e igualitária.

Como repórter, ele já havia visitado Pernambuco no início dos 1960, para conhecer e escrever sobre as Ligas Camponesas e um perfil do seu líder, o advogado Francisco Julião. A reportagem, vencedora do Prêmio Esso, foi compilada no livro Os industriais da seca e os galileus de Pernambuco, que reuniu outros textos jornalísticos resultantes de suas viagens ao Nordeste. Em 1964, a experiência com as Ligas ganhou uma versão para o teatro com a peça Forró no Engenho Cananeia.

Callado voltou a Pernambuco pouco antes do golpe militar, para conhecer a experiência do primeiro governo de Miguel Arraes. Dessa vez, o material foi publicado no Jornal do Brasil na forma de uma série de reportagens, entre dezembro de 1963 e janeiro do fatídico 1964. Sem imaginar o que viria pela frente, sentenciou: “Pernambuco é, neste momento, o maior laboratório de experiências sociais e o maior produtor de ideias do Brasil”.

Depois do golpe, com Arraes preso em Fernando de Noronha, publicou a reportagem no formato de livro sob o título Tempos de Arraes – a revolução sem violência. Era preciso coragem e espírito provocador para fazer tal coisa em pleno ano de 1965.

Pôster de Che

A clareza e a coerência que mantinha no campo político lhe renderam três prisões. A primeira, rápida e sem maiores consequências, ainda em 1964, em um protesto no centro do Rio de Janeiro em companhia de outros intelectuais. No período imediatamente posterior ao AI-5, perambulou de quartel em quartel levando um pôster de Che Guevara, depois de ser preso por organizar e participar de uma manifestação contra a presença do ditador Costa e Silva na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) para um almoço de confraternização. “Não se almoça com quem quer nos jantar”, teria dito, com irritação. Por fim, em 1978, foi detido junto com Chico Buarque quando retornava de uma viagem a Cuba, onde fez parte do júri do prêmio literário Casa de las Américas.

A segunda prisão gerou outros problemas. Numa decisão inédita, em março de 1969, Antonio Callado teve seus direitos políticos cassados pela ditadura. Até aí, nenhuma novidade. Centenas de outros jornalistas e intelectuais foram vítimas de processos semelhantes. O mais bizarro, contudo, foi a proibição de trabalhar “em qualquer atividade de jornalismo de empresas jornalísticas ou estações radiodifusoras de som e imagem bem assim as de magistério em qualquer nível”.

A decisão era absurda até mesmo para os padrões da ditadura brasileira. Não demorou e foi revogada por pressão da ABI, dirigida por um conselho dócil aos militares, e de um jornalista célebre por suas ligações com os quartéis, o colunista social Ibrahim Sued. Este publicou um apelo em sua coluna diária no jornal O Globo.

Ana Arruda acredita que foi a notinha de Sued, mais do que o posicionamento vacilante da ABI, que determinou a revogação do decreto de abril de 1969. O documento, por sinal, chegou a ser publicado no Diário Oficial, mas com o tempo e com a anulação dos seus efeitos transformou-se numa espécie de lenda.

Para muita gente, era uma história que Callado contava para enriquecer seu folclore pessoal. “Encontrar o documento de cassação foi uma vitória. No processo de produção do livro e com a ajuda de um único registro na internet, encontramos o jornal na Biblioteca Nacional”, conta a viúva do jornalista.

Mesmo tendo conhecido o marido em 1971, Ana lembra que Callado falava sobre a postura honrada do proprietário do Jornal do Brasil, Manuel Francisco do Nascimento Brito, nos meses em que durou a proibição. A empresa pediu que ele ficasse em casa, mas permaneceu enviando seu salário integral e “por fora”, sem registros contábeis ou na folha de pagamento.

Quando foi cassado, Antonio Callado havia conquistado respeito e notoriedade na imprensa mundial, graças à série de reportagens sobre a Guerra do Vietnã. Como era de praxe, os textos com relatos das atrocidades praticadas pelos americanos, histórias da resistência, um perfil do líder vietcongue Ho Chi Minh e uma surpreendente entrevista com um piloto americano feito prisioneiro foram reunidos no livro Vietnã do Norte: advertência aos agressores.

Um “lorde” inglês

Era difícil conciliar a ousadia como repórter e a radicalidade política ao temperamento de Antonio Callado. Tímido, extremamente reservado, não gostava de falar de si próprio ou de seus projetos.

Sobre ele, Nelson Rodrigues, porta-voz assumido do pensamento conservador e defensor da ditadura, dizia que era “o único inglês da vida real”. O psicanalista Hélio Pellegrino foi outro que cunhou uma definição repetida ad nauseam pelos jornais nos editoriais que se seguiram à sua morte em 1997, dois dias depois de completar 80 anos. Para ele, o amigo Callado era “um doce radical”.

Cedo, Ana aprendeu a conviver com esse homem quieto, tranquilo e de muitos amigos. “Quando nos conhecemos, ele era viúvo, tinha três filhos e uma história. Aceitava seus silêncios. Callado não falava nada sobre seus projetos. Quando estava escrevendo Concerto carioca, ia todos os dias ao Jardim Botânico, mas não falava nada. Eu só me perguntava o que diabos ele tanto fazia por lá.” Callado dizia para a esposa que era o oposto de Darcy Ribeiro, este, sim, falante, que contava para qualquer um quais suas ideias, antecipava trechos inteiros de livros nos quais estava trabalhando. Ana acredita que, para ele, escrever em silêncio era sinônimo de viver: “Ele era muito namorador, mas se eu tivesse que ter ciúme de alguma coisa, não seria de mulher nenhuma. Seria da literatura e dos livros”.

Encontrar as fotografias, documentos, cartas, bilhetes e originais de livros que compõem o livro não foi difícil. Quando Callado morreu, há 16 anos, a família doou a maior parte da biblioteca e dos arquivos para a Fundação Casa de Rui Barbosa, que já havia organizado todo o acervo. A organizadora da publicação calcula que “70% do material estava todo na Fundação”. Com exceção de casos isolados, como o decreto da cassação, ela ou os seus enteados guardavam o restante em casa, como a medalha e a espora do bisavô, um marechal português que foi um dos maiores repressores das revoltas populares na época de D. Pedro II.

Complicado mesmo – como era de se esperar – foi lidar com as recordações. Com a participação ou ajuda de sobrinhos, netos e de Tessy, a filha mais velha de Callado, vários encontros para discutir a divisão de tarefas e escolha ou ordenamento do material transformaram-se em emocionantes reuniões familiares. Essa atmosfera se faz presente nas páginas finais do livro, em que se encontram as fotos do escritor com seus amigos e parentes.

Com a experiência de ter escrito cinco biografias de mulheres, Ana Arruda sentia-se na obrigação de publicar algo para preservar a memória do homem com quem conviveu durante 26 anos. Desde quando o livro ainda era um rascunho de projeto, não lhe sai da cabeça um episódio do tempo em que os dois tinham decidido morar juntos: “Eu estava sozinha no apartamento, quando Salim Simão, provavelmente o melhor amigo de Callado, me procurou e me disse, falando alto como era do seu jeito: ‘Eu sei que você e Callado estão juntos, mas não pense que vai conhecer Antonio Callado. Ninguém conhece Antonio Callado’. E foi embora”.

Ao final da pesquisa, ela encara como proféticas as palavras de Simão, pois sente que “deve haver muitos cantinhos dele ainda escondidos”. Com a Fotobiografia, pelo menos ela sabe que seu compromisso com a memória do marido morto está honrado: “Publicado o livro, eu me divorcio definitivamente de Antonio Callado. Que os outros cuidem dele a partir de agora”

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Inácio França, para a Revista Continente