Foi numa sala de embarque que li “A Tradução, essa Faminta Quimera – Para Quem Escreve o Autor Local?“, artigo de Luciana Villas-Boas publicado nesta “Ilustríssima” há dois domingos. Estava nos Estados Unidos para divulgar a tradução de um romance, convidado pelas universidades de Stanford, UCLA, Princeton, Yale, Brown, Illinois, Indiana e NYU. Apesar da lista elegante, foram leituras de alcance restrito, para turmas de pós-graduação. Ainda não cheguei ao sofá da Oprah ou à lista de mais vendidos do “New York Times”.
Foram necessários três anos e meio para que se esgotasse a primeira fornada, de 3.000 exemplares, de meu livro mais recente, que agora terá nova edição. Embora não seja um estrondo comercial, “O Único Final Feliz para uma História de Amor É um Acidente” (Companhia das Letras, 2010) já chegou às livrarias de Portugal, Espanha, Alemanha, Argentina, França e EUA, ainda que em distribuição restrita. Até junho, será editado na Finlândia e na Romênia.
O mérito é de cada um dos tradutores que se apaixonou pelo livro, normalmente propondo a tradução e antecipando-se a acordos editoriais. É da agência e dos editores estrangeiros que acreditaram nas excentricidades deste escritor. Mas nada disso seria possível sem o programa de traduções da Fundação Biblioteca Nacional. Sua retomada foi fundamental para a difusão da nossa literatura no exterior nos últimos anos. (Importante lembrar que não se trata de invenção brasileira. Muitas das traduções que consumimos no Brasil são fruto de iniciativas similares, já bastante tradicionais em mercados como a Europa.)
Diferentemente de Villas-Boas e de Raquel Cozer, que também publicou texto na penúltima edição deste caderno, não sou grande conhecedor dos números de exemplares vendidos meus ou dos meus colegas de geração –numa mesa de literatos brasileiros dos anos 10, falar disso é tabu maior do que teorizar sobre a própria produção (ou do que confessar a inveja que temos dos escritores gaúchos).
Por isso não tenho o número total de vendas do meu livro fora do Brasil, mas desconfio que seja maior que o doméstico. Se contarmos pelas tiragens, ele foi impresso três ou quatro vezes mais no exterior. Também foi mais resenhado fora. Agora a imprensa argentina e francesa começam a falar dele, apontando aspectos que a crítica brasileira, portuguesa ou alemã não tinham levantado. E o romance começa a ser lido com atenção por alguns estudantes estrangeiros. Essas novas camadas de leitura jogam luzes diferentes à obra e oxigenam o seu autor.
Em termos absolutos, são números ainda pequenos. É um começo e uma aposta. Deixo, no entanto, ao departamento comercial das editoras e agências o papel de julgar produção literária e sua repercussão ao longo da história por desempenho das vendas.
Estouro
Ao contrário do que alguns colegas e editores sugerem, não acredito que um escritor deva moldar sua literatura com o objetivo de ser acessível e virar um “estouro de mercado”. Num país que transformou autores como Guimarães Rosa e Clarice Lispector em cânone, dimensionar pretensão artística sob a demanda do leitor médio seria fruto de uma inversão lógica que, no limite, nos levaria ao grunhido.
Continuo a escrever exatamente o que quero, mas sempre me disponho ao embate. Nos últimos anos tive a sorte de vender livros em vilarejos ao norte da Alemanha, em balneários caribenhos, em Macau e no Meio-Oeste americano. Também o fiz em dezenas de cidades do meu país, de Foz do Iguaçu ao interior do Maranhão.
O trabalho de arregimentar novos leitores –para mim e para a literatura brasileira– é um corpo a corpo ao qual tenho dedicado boa parte do meu tempo na última década, dentro e fora do Brasil. É o foco do meu trabalho? Não. Escrevo para isso? Não. Ganho dinheiro com isso? Aqui, pouco. No exterior, nenhum. Mas esses encontros ajudam a entender o que faço. E, ainda que entre a espetacularização da figura do escritor e uma difusão efetiva do hábito da leitura exista um abismo por trás de uma cortina de fumaça de boas intenções, com sorte ganho um ou outro leitor ao final dessas performances. Por isso, continuo.
Cada leitor é tão importante quanto o próximo. “20 leitores locais são mais preciosos que uma edição na Bulgária”? Não. A não ser que a edição búlgara tenha menos de 20 exemplares vendidos. O “autor local”, como Luciana Villas-Boas gosta de chamar, escreve para o mundo, onde buscará seus leitores. Nem mesmo o seu país irá reconhecê-lo se ele não tiver essa pretensão.
Obsessão
Luciana Villas-Boas começa seu artigo com uma assertiva meio grosseira: “O autor brasileiro é vidrado numa tradução”. Depois, ao traçar com detalhe os motivos do divórcio entre literatura e sociedade nas últimas décadas, dá a dica que poderia explicar nossa estranha obsessão, mas deixa a ponta meio solta.
O autor brasileiro não é vidrado numa tradução por “cultivar o sonho colonizado e aprisionador do sucesso no Primeiro Mundo’”, como o texto diz. Ele é vidrado numa tradução porque quer ser lido. E porque nasceu num país que tem lido muito pouco literatura contemporânea.
A tiragem inicial média de um romance em Portugal é a mesma que aqui, ainda que nossa população seja quase 20 vezes a de lá. Nossos números podem ser ainda mais vergonhosos: em 2011, quase quatro em cada dez universitários não podiam ser considerados plenamente alfabetizados –os dados são do Instituto Paulo Montenegro (IPM). Não há ação editorial que resolva tal problema.
Talvez seja por isso que escritores brasileiros precisem repetir como um mantra: escrevo exatamente o livro que posso e desejo escrever. Se a obra pronta se transformará numa “aposta ousada” ou convidará novos brasileiros ao hábito da leitura é algo que está totalmente fora da minha lista de prioridades quando escrevo. Para a ira de alguns, não apenas escrevemos o que queremos, mas também queremos ser lidos sem nenhum tipo de concessão às necessidades do mercado editorial ou à última onda anglo-saxônica. A lógica por trás do artigo de Villas-Boas sucumbe ao provincianismo que ela credita ao autor brasileiro.
A mesmice não está na produção literária dos contemporâneos. É só ler seus livros com os olhos abertos, o que alguns “scouts” de agência e críticos literários com pedigree não costumam fazer, sempre procurando neles outros que já foram escritos.
O “mais do mesmo” está nesse tom acusatório, vindo de certos editores, acadêmicos e escritores que tentam corresponsabilizar a produção contemporânea por um problema estrutural de educação no país. O desprestígio da ficção brasileira no mercado local é fruto do desprestígio da leitura como um todo no Brasil. Creditá-lo aos livros publicados ou aos interesses dos seus autores é um erro que ajuda a intoxicar ainda mais um ambiente não muito conhecido pela sua lisura.
O editor e escritor Paulo Roberto Pires, num seminário em que estivemos juntos na Universidade Brown no ano passado, terminou seu panorama sobre a literatura brasileira contemporânea com uma imagem arrasadora:
“O crítico marxista Francisco de Oliveira certa vez definiu o capitalismo brasileiro como um ornitorrinco, aquele estranho animal que é ao mesmo tempo da terra e da água, mamífero e ovíparo, uma exceção eterna no conceito da evolução das espécies. Eu acho que é uma boa metáfora para pensar a literatura brasileira hoje. Nós somos ornitorrincos literários: temos público, mas não temos leitores, nós viajamos ao redor do mundo, mas não temos reconhecimento no nosso país, nós somos the next big thing’, mas não ganhamos dinheiro com isso, nós ganhamos a vida falando para muita gente sobre livros lidos por apenas alguns deles. Nós somos, mesmo contra a nossa vontade, um espelho do nosso país.”
O ornitorrinco não tem culpa de ser ornitorrinco, Luciana. Libertemos o escritor brasileiro de mais essa.
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João Paulo Cuenca, 35, é escritor e colunista da Folha de S.Paulo, autor de O Único Final Feliz para uma História de Amor É um Acidente (Companhia das Letras) e O Dia Mastroianni (Agir)