Um homem torturado é a reconstrução da militância de uma das figuras mais trágicas da resistência à ditadura militar: frei Tito. Frade dominicano, preso e torturado junto com outros religiosos que deram apoio logístico à ALN de Carlos Marighella, Tito sucidou-se anos depois em um convento francês. A tortura havia conseguido quebrá-lo psicologicamente, transformando sua vida posterior em um inferno de delírios e alucinações.
Sua história é uma das representações mais bem acabadas do engajamento da esquerda católica na luta contra as ditaduras latino-americanas, engajamento que foi apenas um capítulo da longa história de setores da Igreja Católica em sua aliança com movimentos operários e comunistas no século XX. Na América Latina, solo para o desenvolvimento da Teologia da Libertação, tal aliança chegou a levar religiosos, como o colombiano Camilo Torres, a entrar diretamente na luta armada. Neste sentido, o livro de Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles é documento importante para o esclarecimento de um processo político fundamental na compreensão da história recente latino-americana. Ele reconstrói contextos históricos esquecidos e distantes, principalmente após a guinada conservadora produzida no interior da Igreja Católica a partir de João Paulo II.
Na contramão
Ao narrar a história de frei Tito a partir de um estudo exaustivo, Leneide e Clarisse fazem, no entanto, mais do que a reconstrução de processos históricos. Em certo momento, elas se lembram desta afirmação feita por um torturador a Tito: “Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis”. Na verdade, tal frase sintetizava de maneira precisa a natureza da violência e da máquina criminosa produzida pela ditadura brasileira. “Fazer as coisas sem deixar marcas visíveis”, ou seja, tirar as marcas da violência da visibilidade pública, apagá-la e, com ela, apagar as histórias que tal violência destruiu. A ditadura brasileira foi, até agora, bem-sucedida nessa sua empreitada e graças a tal sucesso ela conseguiu, de certa forma, nunca ter terminado.
Neste contexto de invisibilidade e esquecimento forçado, o uso da memória é um ato político maior, pois impede que o tempo possa extorquir reconciliações meramente formais. Contra o silêncio, ele coloca novamente em circulação as descrições minuciosas, feitas por Tito, de sua própria tortura. Ele nos faz sentir o tempo desesperado dos torturados políticos, com sua devastação psicológica. Por isto, o lançamento deste livro, no momento em que o Golpe militar completará 50 anos, no mesmo momento em que o Brasil se confronta mais uma vez coma brutalidade da Polícia Militar que a ditadura deixou, com suas torturas e assassinatos, nos ajuda a lembrar como nos acostumamos com um Estado que pratica os piores crimes contra sua população, de onde vem nossa complacência. No entanto, vemos aos poucos os limites desta operação.
Aos poucos, volta à luz a presença dos que lutam, na contramão de décadas de recalque, para impedir que a complacência histórica com os criminosos que se apoderaram do poder do Estado seja o capítulo final de nossa história. Muitos são jovens que só agora descobrem a verdadeira face da história de seu país. É para eles, é para nossas escolas, que o livro de Leneide e Clarisse se dirige.
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Vladimir Safatle é filósofo, professor livre-docente da Universidade de São Paulo